Ela virou princesa no fundo do riacho, conheceu o Gato Félix e Aladim e curtiu uma coleção invejável de aventuras com a turma do sítio. Reinações de Narizinho encanta gerações há 80 anos
Dona Aranha Costureira tirou do armário de madrepérola o vestido feito de “cor do mar”. A noiva, tonta de admiracão, teve de se sentar para não cair. “Que maravilha das maravilhas!”, disse Lúcia, prestes a tornar-se princesa do Reino das Águas Claras. Peixes azuis, dourados, de todas as formas e cores nadavam na fazenda. Casar aos 7 anos com um príncipe escamado, debaixo d?água e tendo uma boneca de pano tagarela como dama de companhia, não é para qualquer uma. E não foi fácil celebrar a união com uma lista de convidados como a dela. Era sua segunda visita ao reino. Na primeira, o doutor Caramujo dera à boneca Emília as pilulas falantes – que fizeram dela uma grande “asneirenta”. Dessa vez, a menina levou consigo também o primo da cidade, Pedrinho, o sábio Visconde de Sabugosa, feito de espiga de milho, e o Marquês de Rabicó, porquinho de gula incontrolável – comeu a coroa de rosquinha da noiva e quase estraga a festa.
Lúcia e a turma viveram tantas aventuras quanto permitiu o faz de conta. Criada em 1920, em A Menina do Narizinho Arrebitado, ela ganhou um volume especial de suas peripécias em 1931. O apelido pegou, assim como o universo encantado do Sítio do Picapau Amarelo, criado pelo escritor Monteiro Lobato. Reinações de Narizinho traz 11 histórias, com começo, meio e fim, escolhidas dentro de algumas de suas favoritas publicadas até então.
Reinações, como praticamente toda a obra de José Bento Monteiro Lobato, é um contraponto entre o arcaico e o moderno no Brasil da primeira metade do século 20. “No ambiente rural (o da infância do próprio autor numa Taubaté abandonada após o ciclo do café), vive Dona Benta, uma mulher extremamente culta, conhecedora da ciência e progressista”, diz o historiador Raimundo Campos Bandeira, estudioso do trabalho do escritor. “Lobato dissecou a realidade brasileira.”
É a avó, “uma velha de mais de 60 anos”, a principal influência sobre Narizinho, com quem vive no sítio, junto com a “negra de estimação”, Tia Nastácia, e a boneca Emília, “bastante desajeitada de corpo”. Como se nota, alguns termos do livro retratam bem a época em que foram escritos (para não entrar na polêmica sobre o politicamente correto ou sobre a melhor forma de usá-los em sala de aula).
Os personagens já existiam em outras obras de Lobato, como Pedrinho, que surgiu em A Caçada da Onça, de 1924, e depois foram trazidos para o contexto do sítio. Outros “expandiram-se” de Reinações para suas próprias histórias publicadas mais tarde, como O Poço do Visconde, Histórias de Tia Nastácia e Serões de Dona Benta, todos de 1937. Como a primeira grande coleção de aventuras da turma, Reinações deu uma nova dimensão ao sítio, consolidando seu universo encantado. Seduzido pela ideia do progresso e admirador do cinema americano (o autor morou nos EUA de 1927 a 31), Lobato fez interagir com os personagens do sítio o caubói Tom Mix e o Gato Félix, além de figuras “clássicas”, como Branca de Neve e Aladim. “É um verdadeiro trançar de histórias”, afirma Bandeira. Até surgir Narizinho, “a literatura infantil praticamente não existia entre nós, havia tão-somente o conto de fundo folclórico”, diz Edgar Cavalheiro em Monteiro Lobato – Vida e Obra. O primeiro livro para crianças publicado no país, Contos da Carrocinha (1896), era a tradução de historietas europeias. Com Narizinho, “Lobato faculta à infância brasileira, com o prazer da leitura, o sentimento das coisas da terra”.
São novos valores, associados à ideia da autonomia e inteligência infantil. No sítio, não há pai nem mãe. A familia tradicional é rompida em favor da liberdade. “Só as vovós aturam crianças e deixam-nas fazer o que querem”, escreveu Lobato. Numa época em que os pequenos eram vistos como miniadultos e não tinham espaço definido na sociedade, o autor foi visionário, diferenciando os dois públicos na forma como compreendem a realidade e a fantasia. Na pele de Pedrinho, ele até manifesta sua preferência pela maneira de pensar das crianças. O garoto é valente, não tem medo de nada (só “respeita” as vespas) e é ele quem protege Nastácia dos bichos do fundo do mar que vão visitar o sítio – animais inofensivos que metem medo nos adultos. Já Narizinho demonstra sabedoria invejável”: concilia as mais distintas (e intensas) personalidades da turma, resolve conflitos e tem bom coração, sem ser submissa.
Empurrão
A entrada dessa literatura na vida das crianças, porém, precisou de um empurrãozinho do criador. Editor de seus próprios livros, Lobato doou 500 exemplares de Narizinho Arrebitado, a primeira obra que compôs Reinações, para escolas públicas de São Paulo. Logo ganhou muitos fãs entre os alunos. Após notar os volumes sempre sujos e surrados em várias escolas, o então presidente do estado, Washington Luís, mandou comprar e distribuir mais de 30 mil exemplares.
Foi uma verdadeira “avalanche nasal”, nas palavras do autor. Narizinho nunca mais deixou de ser lida, reeditada e repaginada em todas as mídias. (E Reinações prenunciou esse sucesso.) Rendeu programas de TV, rádio, filmes, música, HQ, peças de teatro e está na internet. A primeira versão do Sítio para a televisão foi ao ar em 1952 na extinta TV Tupi. Depois passou por mais duas emissoras até chegar à TV Globo, em 1977. Essa adaptação (conhecida inclusive no exterior) ficou no ar até 1986 e ganhou novas temporadas, exibidas entre 2001 e 2007. Em 2010, aos 90 anos, A Menina do Narizinho Arrebitado foi transformada na primeira versão interativa de uma obra literária brasileira para iPad.
Empreendedor, Lobato não só costumava editar os próprios livros – se envolveu em várias polêmicas. Sua crítica à pintura de Anita Malfatti fez com que os modernistas (que liderariam a Semana de Arte Moderna de 1922) o tratassem como reacionário – diferenças superadas depois. Em 1940, ao defender a exploração de petróleo no Brasil (ele montou uma empresa de perfuração, em 1932), lançou um dossiê acusando o governo de agir contra o interesse nacional. Também atacou a política mineradora e foi preso no ano seguinte pela ditadura Vargas. Livrou-se seis meses depois graças a uma campanha de intelectuais. Ele não segurava a língua e lembrava Dona Benta, “que nunca havia mentido em toda a sua vida”. Ela bem que tentou uma vez, com medo de que Anastácia não acreditasse no relato da viagem com pó de pirlimpimpim até o castelo do barão de Munchausen. Mas a cozinheira a corrigiu, pois já sabia das aventuras pelo burro falante. Nesse último capítulo de Reinações, aparece uma avó com a mente ainda mais aberta, como se verá nos Serões.
Defensor da liberdade de imprensa, o escritor teve problemas com o governo mesmo após o Estado Novo e mudou-se para Buenos Aires em busca de um pouco de sossego. Em 1948, um aneurisma cerebral o matou. À época, já andava triste (perdera os dois filhos alguns anos antes), tal qual Pedrinho no fim das Reinações, quando foi convocado pela mãe para voltar à casa e deixar para trás Narizinho e o Sítio do Picapau Amarelo.
Sob a fantasia
Elementos que influenciaram a construção dos protagonistas
Visconde de Sabugosa
É um sábio. Para o escritor, sábio não tem e não precisa ter personalidade bem definida e pode dizer coisas sem dar muita explicação.
Emília
Mostra como os brinquedos eram feitos com restos do que havia nas casas. Ao falar, transforma-se numa grande questionadora e, para Lobato, adquire independência.
Tia Nastácia
Representa a “preta quituteira”, que não podia faltar em nenhuma fazenda. É uma figura maternal, extremamente amorosa, muito medrosa e mística.
Pedrinho
Reflete o próprio escritor quando criança: curioso sobre o mundo, interessado em aventuras e muito valente.
AH