Quem tem irmãos, primos, ou até aquele amigo muito próximo sabe o que é ter que repartir o último pedaço de bolo da festa do dia anterior guardado na geladeira.
Consideremos a seguinte situação: o pedaço que sobrou já não é muito grande, são três primos para dividir, sendo um deles aquele primo mais velho, que sabe algumas más-criações suas, e pode usá-las contra você, esse mesmo primo pede que o pedaço dele seja maior… Você e seu outro primo ficam bem desgostosos, pois sabem que, se quisessem, poderiam falar com sua avó, e ela repartiria o bolo por igual; mas o poder do primo mais velho os leva a aceitar a repartição injusta.
Consideremos outra situação: PIB estagnado, desemprego em crescimento desde 2013, crise econômica e previdenciária no país, funcionalismo público que estoura seus limites de gastos com pessoal nos três níveis federativos (União, estados e municípios), assim como nos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário).
Perante essa crise, o Judiciário solicita a votação do aumento de 16,38% no salário dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Qualquer semelhança com a história do primo mais velho não é mera coincidência. Explico o porquê.
O Poder Judiciário, atualmente, já não cumpre o teto constitucional de gastos: “em 2017, cresceram 7,5%, em termos nominais, enquanto o teto previa [limite de] 7,2%. Em 2018, no acumulado dos últimos 12 meses, as despesas já cresceram 4,1%, enquanto o teto para este ano é de 3%. Assim sendo, de acordo com a projeção de Vilma da Conceição Pinto, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getulio Vargas (FGV), “no modo agregado, o Poder Judiciário não está cumprindo o teto.”
O aumento solicitado culminará em uma consequência denominada “efeito cascata”, refletindo em acréscimo salarial para todos os magistrados federais e membros do Ministério Público Federal, além de possibilitar o aumento salarial de todo o funcionalismo público, já que o salário dos Ministros do STF serve como teto para o funcionalismo de todas as esferas federais, conforme disposto no art. 37, XI da Constituição Federal. Calcula-se que a aprovação deste aumento na última quarta-feira, dia 7 de novembro, no Senado Federal, ocasionará um rombo de 4 bilhões anuais para as contas públicas.
Não poderia haver momento mais inoportuno para a aprovação de tal aumento, visto que, no primeiro quadrimestre de 2018, metade dos estados brasileiros já havia passado o limite de gastos com pessoal no Poder Judiciário. Esta conta, inclusive, desconsidera os “penduricalhos” de benefícios recebidos pelos servidores – o Relatório Justiça em Números 2018, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), informa que, com esses benefícios, a despesa média por servidor é de R$ 48,5 mil.
Já em 2016, o gasto com pessoal representava cerca de 90% das despesas de todo o Judiciário, de acordo com dados apresentados pelo CNJ.
A pergunta que não quer calar frente a esse cenário é: por que um Congresso que, em 2016, aprovava a Emenda Constitucional 95, a famosa “PEC do teto de gastos”, que impedia que os gastos públicos crescessem acima da inflação, bloqueando investimentos em educação e saúde, aprovaria aumento salarial tem como consequência, impiedosa, o agravamento da crise econômica do Estado?
É de competência do Supremo processar e julgar originariamente os membros do Congresso Nacional. Conhecida como “foro privilegiado”, essa previsão constitucional significa que processos contra Deputados Federais e Senadores iniciam sua tramitação no STF, e não nas varas da Justiça Estadual e Federal. Em maio deste ano, o órgão restringiu a aplicação apenas a crimes relacionados ao mandato ou cometidos durante seu exercício. Esta medida poderia afetar o julgamento de algumas dezenas de parlamentares.
Há de se observar o aumento do número de membros do Executivo investigados pelo STF. Desde 2016, a porcentagem de parlamentares investigados cresceu 68%. Ao todo, são 238 parlamentares, entre Deputados e Senadores, processados pelo Supremo.
Nomes famosos na política não exatamente por uma atuação exemplar e pautada pelo interesse público, como Renan Calheiros e Romero Jucá, apresentaram falas favoráveis ao aumento. O relator da proposta, Senador Fernando Bezerra Coelho, teve inquérito arquivado pelo Supremo em setembro último. É possível que o Senado seja uma das casas dos primos mais novos.