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domingo 24 novembro 2024
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O estranho Jesus dos evangelhos apócrifos

Nos textos excluídos da Bíblia , o messias era casado, havia sido um criança furiosa e até mesmo foi filho de Cleópatra
A Bíblia é omissa em 26 dos 33 anos de Cristo. O que teria feito durante sua infância, adolescência e boa parte da vida adulta? A procura de pistas sobre seu paradeiro é recente. Muitas fontes antigas pintam um retrato diferente do filho do Deus dos cristãos.
Quando criança, Jesus matou um colega com o poder de sua voz, andou sobre um raio de sol e salvou a vida de seu irmão moribundo. Desobedeceu aos pais e destratou os professores. Também foi educado na Índia, com passagem pela Pérsia e até mesmo pela Grécia. E ainda teria ido à Inglaterra, levado por José de Arimateia (o homem que depois, segundo a Bíblia, cuidou de seu enterro).
Nesse meio tempo, encontrou-se com vários personagens que se revelariam importantes em sua vida adulta. Na juventude, foi um seguidor fiel de João Batista, um essênio, a seita dos judeus ascetas. Absurdo? O que você leu faz parte de lendas e teorias sobre a vida de Jesus.
É incrível, mas a vida do homem mais importante do Ocidente nos últimos 2 mil anos resume-se a poucos fragmentos na sua, digamos, biografia oficial. E, nos Evangelhos, ele anda sobre as águas, ressuscita mortos, transfere demônios de pessoas para porcos e multiplica comida. A procura pelo chamado Jesus histórico tem como fonte principal os mesmos Evangelhos – descontados os milagres – e a arqueologia.
O filho de Cleópatra
Os textos bíblicos saltam do nascimento para a adolescência e dali direto para a parte final de sua vida, que daria início ao cristianismo. O Novo Testamento é silencioso sobre 26 dos 33 anos de vida de Jesus Cristo: a fase entre os 4 e os 30 anos de idade, com uma breve descrição de um episódio do jovem Jesus. Essa falta de informações alimentou uma série de lendas e textos apócrifos sobre os anos perdidos de Cristo.
Uma delas aproveita a referência bíblica da fuga de José e Maria para o Egito. A vida em terras egípcias deu origem a uma lenda, ainda hoje muito popular naquele país: a de que Jesus seria egípcio, filho da rainha Cleópatra e do general romano Marco Antônio. Para preservar o fruto de um relacionamento tão perigoso politicamente, ele teria sido doado para ser criado por José e Maria.
É uma lenda anacrônica: Cleópatra e Marco Antônio morreram em 30 a.C., décadas antes do nascimento de Jesus. E seria um bizarro caso de poderosos que doam o filho para ser criado por gente pobre.
Outras lendas sobre Jesus no Egito se mostrariam decisivas para a Igreja Ortodoxa Copta, denominação cristã no país e no mundo árabe, hoje com 15 milhões de seguidores. Logo na chegada ao novo lar, o menino expulsou demônios de um garoto possuído – que saíam da boca do jovem às dezenas, na forma de cobras e morcegos, segundo o Evangelho da Infância de Nosso Senhor Jesus.
Ele teria sido reverenciado por animais e as palmeiras se curvariam à medida que passava. Também teria conhecido ali duas crianças que depois se tornariam os bons ladrões crucificados ao seu lado, 30 anos depois. Salomé, uma das futuras seguidoras de Cristo, teria sido sua babá e assistente de Maria – sua mãe, ou a mulher escolhida para educá-lo, segundo a lenda.
Marco Antônio e Cleopatra, por Lawrence Alma-Tadema, 1883; mostra o momento em que Antônio encontra Cleopatra em 41 a.C.Wikimidia Commons
O nascimento de Jesus está presente nos textos sagrados de outra religião, o Islã. Segundo o Alcorão, tal como na Bíblia, ele nasceu de uma virgem. Mas ali é comparado a Adão, pois ambos vieram ao mundo diretamente pela vontade de Alá. Os muçulmanos, porém, não o chamam de “filho de Alá”. Para eles, Jesus é um profeta. E dos grandes, o que antecedeu a Maomé, o maior de todos.
Maria, para os islâmicos, não deu à luz numa manjedoura, mas no deserto – e era solteira. Ao sentir as dores do parto, Jesus falou com ela de seu útero, dizendo para que chacoalhasse a tamareira sob a qual estava abrigada. Ela deveria comer os frutos que caíssem no chão e beber a água de um riacho próximo – eram presentes de Alá para que se sentisse melhor. Jesus nasceu logo depois.
Quando voltou a Belém, Maria foi ridicularizada. Na sinagoga, o recém-nascido, com apenas 40 dias de vida, falou para a comunidade, que duvidava do milagre e acusavam Maria de ser mãe solteira: “Sou, de fato, servo de Alá. Ele fez de mim um profeta”.
Para além das religiões estabelecidas, histórias da infância de Jesus extrapolam a própria geografia do Oriente Médio. Ele não só teria sido educado na Índia e em monastérios do Himalaia como teria escapado da crucificação, voltado para a Caxemira, passando por Grécia e Pérsia – e permanecido em território indiano até a morte, aos 120 anos. Quem consolidou a lenda foi o jornalista russo Nicolai Notovitch, em The Unknown Life of Jesus Christ, após visita à Índia, em 1887.
Relatos antigos mencionam um profeta chamado Issa. Há quem veja nos ensinamentos cristãos de não violência – inaceitáveis para os padrões de pensamento judaico de então – um eco da filosofia budista.
Outra viagem alucinante: a Inglaterra. O contato de Jesus com a ilha britânica supostamente ocorreu por intermédio de seu tio José de Arimateia. Sua educação teria passado por ali, em contato com a antiga sabedoria dos druidas. E ele voltou para a Palestina apenas depois dos 20 anos de idade.
Um dos maiores divulgadores dessa história é o poeta William Blake, que no século 19 escreveu um poema muito famoso, conhecido como And Did Those Feet.
Pedreiro em Séforis
Os Evangelhos só retomam a trajetória de Jesus aos 12 anos, quando ele viaja com os pais para celebrar o Pessach, a Páscoa judaica, em Jerusalém. Maria segue em uma caravana de mulheres. José, em uma de homens.
Na volta, ela acha que o filho está com ele e vice-versa. O casal volta para a capital da província e, depois de três dias, encontram o adolescente surpreendendo os rabinos com seu grau de conhecimento das Escrituras. Tentam dar uma bronca no garoto, mas a reação dele os espanta: “Não sabes que me convém tratar dos negócios de meu Pai?”
A dar-se crédito ao episódio, fica claro que Jesus não era apenas um aprendiz de marceneiro, ou pedreiro (a palavra tekton define melhor um mestre de obras, um faz-tudo, do que um carpinteiro). “Ele sabia ler e escrever e conhecia as Escrituras com bastante profundidade”, diz a historiadora Paula Fredriksen, da Universidade de Boston.
Nazaré não tinha escolas respeitáveis, nem mercado de trabalho para uma família de construtores sobreviver – ainda assim, no Evangelho de Marcos, Jesus é citado como um tekton.
Como foi possível que tivesse esse grau de conhecimento das Escrituras e exercesse a profissão do pai? A resposta mais provável não está na Índia, no Egito, na Grécia, nem na Inglaterra. Acontece que a Nazaré da época foi uma cidade-satélite de Séforis, que ficava a apenas 8 km de distância e era um grande centro administrativo da Galileia.
Sob o governo de Herodes Antipas, Séforis havia sido transformada em um imenso canteiro de obras depois que uma rebelião judaica foi reprimida ali com a destruição da cidade. Como se vê, Séforis era também um centro judaico expressivo e local de conflitos com a cultura romana.
Atualmente, Séforis abriga um grande sítio arqueológico – ruas inteiras com casas judaicas foram desenterradas e preservadas. “Séforis é o lugar ideal para se imaginar a formação do jovem Jesus. Fornecia o ganha-pão para ele e sua família e a instrução que ele certamente recebeu”, afirma Robert Eisenman, professor de religião e arqueologia da California State University.
A pujança da cidade vizinha ajudaria a entender a instrução elevada de Cristo. “A cena do nascimento na manjedoura em Belém, que dificilmente aconteceu, deixa a impressão de que Jesus teve uma infância pobre. Mas nada nos textos bíblicos indica isso, e Séforis era bastante rica, com muito emprego e centros de formação”, diz Eisenman.
As histórias sobre a infância de Jesus também são encontradas nos chamados evangelhos apócrifos (não reconhecidos pela Igreja) e até nos textos da Ordem Rosa Cruz, que compilou versões gnósticas, entre elas a história da educação na Índia.
O Evangelho de Pseudo-Tomé tenta resgatar sua vida entre a volta da temporada no Egito, aos 4 anos, e o episódio do encontro com os rabinos, aos 12 – descrito no Evangelho de Lucas. Ao que tudo indica, o autor, de origem gentia, reuniu relatos orais e epístolas. “O Evangelho de Pseudo-Tomé é o mais influente texto apócrifo sobre a infância de Jesus”, diz James Tabor, professor da Universidade da Carolina do Norte.
Fúria de criança
Uma das passagens do Evangelho de Pseudo-Tomé conta uma história que também está citada no Alcorão. Menino, Jesus fez 12 pássaros de barro durante o sábado. Seu pai, José, o repreendeu, por trabalhar em um dia considerado santo para os judeus. Como resposta, ele soprou os pássaros, que imediatamente ganharam vida. Em outra passagem, dá vida a um peixinho morto. Certa vez, desafiou seus amigos a subir por um raio de sol que entrava pela janela. Ninguém topou, e então ele mesmo caminhou sobre o raio.
O mesmo evangelho mostra um lado pouco conhecido e sombrio de Jesus. O filho do escriba Anás destrói uma pequena represa que o menino havia construído. Furioso, ele lança uma maldição: “Ficarás agora seco como uma árvore”. E o garoto fica paralisado.
No texto, ele aparece como responsável pela morte de mais dois meninos. Outra criança é amaldiçoada depois de dar um soco em Jesus. Os pais da vítima procuram José e Maria para reclamar e Jesus faz com que fiquem cegos. Em compensação, ao ser acusado de ter empurrado Zenon, um garoto que morrera ao cair de um terraço, ele ressuscita o menino só para que ele confirmasse sua versão.
“Estas variações foram elaboradas séculos depois da morte de Cristo, quando a Igreja já estava solidificada. Elas ao mesmo tempo justificavam o poder divino de Jesus e eram coerentes com os relatos tradicionais: o mesmo líder que mata um amigo mais tarde teria um acesso de raiva e atacaria os mercadores do templo de Jerusalém”, diz James Tabor.
Jesus também salvou seu irmão Tiago, quando ele foi picado por uma cobra – bastou assoprar sobre a mordida para que o garoto, que estava quase morto, ficasse curado na hora. Irmão? “Jesus teve irmãos, disso não resta a menor dúvida”, afirma Robert Eisenman. “Os textos sagrados fazem referência a eles e a cultura e a economia locais não possibilitavam a existência de uma família pouco numerosa.”
Os Evangelhos citam seis, duas mulheres, das quais se desconhecem os nomes, e quatro homens: Tiago, Judas, José e Simão. A interpretação de que “irmãos” é uma tradução aberta da expressão grega adelphos, que dá espaço para considerar que eles eram primos ou discípulos muito fiéis, não se sustenta – ainda que seja a oficial para a Igreja Católica. “Muitas denominações cristãs, em especial os católicos, usam este argumento, mas ele não faz sentido”, afirma Tabor.
Jesus também é questionador: desafiou os conhecimentos de pelo menos dois de seus professores, que desistiram de ensinar a ele as leis judaicas – o que dá a entender que o jovem Cristo não tinha muita paciência para as aulas, que na época eram particulares e muito caras. Mais do que isso. Ele corrigia seus professores – e fazia questão de ensinar a eles o real significado das Escrituras.
Um de seus tutores, de acordo com o Evangelho de Pseudo-Tomé, tenta ensinar-lhe grego. “Diga alfa”, diz o professor. “Primeiro me diga o significado de beta”, rebate o menino. Irritado, o mestre tenta bater em Jesus. E na primeira palmada cai morto.
O MESSIAS CASADO
Não é de hoje que se discute se Jesus foi casado – a maior candidata a esposa é Maria Madalena, a seguidora que, de acordo com os Evangelhos canônicos, descobriu que o túmulo do mestre estava vazio três dias depois de sua morte e anunciou a novidade aos discípulos (e, com isso, tornou-se a primeira apóstola em sentido literal, a primeira pessoa a divulgar a boa-nova).
Um fragmento de um antigo papiro, divulgado em setembro, fornece a primeira evidência concreta a respeito do casamento de Jesus. O texto, escrito em copta, uma língua egípcia baseada no grego, afirma: “E Jesus disse: minha mulher”. Em outro trecho, encontra-se a frase: “ela poderá ser minha discípula”.
A professora Karen King, da Universidade Harvard, teve acesso ao pedaço de papiro, de apenas 4 por 8 cm. Ela foi procurada por um colecionador privado, que adquiriu a peça no Egito ou na Síria. Karen cruzou evidências com tradutores, arqueólogos e historiadores, até trazer a público a informação de que o texto, possivelmente uma cópia em copta, feita no século 4, de um texto em grego datado do século 2, indica que Jesus foi casado. Mas não diz com quem.
De toda forma, a professora afirma que esse papiro pode fazer parte de um Evangelho da Esposa de Jesus, um texto apócrifo mais longo com informações sobre a vida conjugal do messias.
Karen foi criticada pelo Vaticano, que não levou a sério a descoberta e desmentiu o papiro no jornal Osservatore Romano. O celibato entre padres e freiras é obrigatório desde o século 12, sob o argumento de que os seguidores de Cristo deviam respeitar seu exemplo e se manter castos. “O fragmento não serve como prova, mas é o primeiro documento escrito que cita que Jesus pode ter tido uma esposa”, diz a pesquisadora.
A discussão começou logo nos primeiros séculos depois da morte de Jesus. Os primeiros textos que afirmam que Cristo era celibatário datam do ano 200, por obra do teólogo Clemente de Alexandria. Antes disso, não havia nenhuma referência indicando seu estado civil – até o aparecimento do papiro.
“Clemente deu início a um movimento que argumentava que Jesus preservou sua pureza. Os líderes da igreja acabaram por aceitar essa posição, mas mesmo em Roma ela foi polêmica por muitos séculos”, afirma Karen. “Não fazia sentido um judeu do século 1 ter se mantido casto. Seus discípulos diretos não eram e os primeiros líderes da igreja divergiam sobre o assunto. Alguns não viam problema no casamento, outros diziam que o líder religioso deveria se dedicar exclusivamente a seus fiéis”.
O chamado Evangelho da Esposa de Jesus tem semelhanças com o Evangelho de Maria, um texto descoberto em 1896 e publicado em 1955. Nele, Madalena é uma discípula importante, cujos conhecimentos dos ensinamentos de Jesus superam até os de Pedro, o primeiro bispo. No Evangelho de Maria, Pedro diz a Madalena: “Irmã, sabemos que o Salvador te amava mais do que qualquer outra mulher. Conta-nos as palavras do Salvador, as de que te lembras, aquelas que só tu sabes e nós nem ouvimos.”
Se Jesus foi casado, será que teve filhos? Não há evidências históricas nem relatos de época que apontem nem que sim, nem que não. Mas, com base na hipótese de Cristo ter sido casado com Madalena, é possível supor que exista uma árvore genealógica para os descendentes do filho de Deus.
Os autores Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln defendem que o filho de Jesus e Maria Madalena deu origem à dinastia merovíngia. Donovan Joyce argumenta que Cristo teve vários filhos, que viveram na Cashemira. A romancista americana Kathleen McGowan foi mais longe: afirma ser ela mesma descendente direta do casal. Seus livros sobre Madalena venderam mais de um milhão de exemplares.

Fonte: Leituras na história