O desmatamento pode estar levando a Floresta Amazônica para uma situação na qual a floresta não consegue mais se regenerar diante das agressões provocadas pelo homem. Se o ritmo atual de devastação for mantido (ou aumentar), este “ponto de não retorno” pode chegar já em algum momento entre 15 a 30 anos. O alerta é de um dos principais estudiosos do tema no país, o climatologista Carlos Nobre.
Nobre conversou com a BBC News Brasil na tarde desta segunda-feira (18), horas depois do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelar um aumento de 29,5% no ritmo do desmatamento da Amazônia entre agosto de 2018 e julho de 2019.
Segundo o sistema Prodes, do Inpe, o país perdeu 9.762 km² de floresta neste período — ante 7.536 km² desmatados na medição anterior. A taxa divulgada nesta segunda é a maior desde 2008, quando quase 13 mil km² de floresta foram destruídos.
Os dados do Prodes levam em conta o período de agosto a julho por conta do ciclo de chuvas da região.
Segundo Carlos Nobre, há evidências de que o “ponto de não retorno” está prestes a ser atingido em alguns locais da Floresta Amazônica, especialmente nas regiões sul e leste da floresta — a estação seca do ano está ficando mais longa nesses locais, e a temperatura está subindo.
“Nossos cálculos indicam que se o desmatamento continuar nesta taxa — em toda a Amazônia, não estou falando apenas da (floresta) brasileira — ou se subir, temos de 15 a 30 anos no máximo antes disso, antes de ultrapassarmos irreversivelmente este ponto”, disse ele na entrevista à BBC News Brasil.
Os dados sobre o desmatamento na Amazônia tornaram-se fonte de desgaste para o governo em julho e agosto deste ano, quando medições preliminares de outro sistema do Inpe, o Deter, apontaram para um crescimento do desmatamento.
Em 19 de julho, num café da manhã com jornalistas, o presidente da República, Jair Bolsonaro, disse que os dados preliminares do Inpe não eram corretos — e que o então presidente do Instituto, o físico Ricardo Galvão, estaria “a serviço de alguma ONG (organização não-governamental)”. A crise resultou na demissão de Ricardo Galvão do comando do Inpe, no começo de agosto.
Agora, diz Carlos Nobre, as informações do Prodes (que tem nível de confiança superior a 95%) confirmam as suspeitas levantadas pelo Deter sobre o aumento no desmatamento.
“Era muito correto afirmar que haveria um aumento muito significativo do desmatamento, e o Prodes confirmou. Não há dúvida disso”, disse.
Os dados divulgados na segunda-feira não dizem respeito somente à gestão de Jair Bolsonaro, iniciada em janeiro de 2019. Mesmo assim, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, admitiu em entrevista a jornalistas na segunda-feira que será preciso “adotar uma estratégia diferente”, articulada com os governos estaduais, para combater o aumento no desmatamento.
Jair Bolsonaro tem criado polêmicas com ambientalistas desde a campanha eleitoral de 2018. Durante a campanha, disse repetidas vezes que não faria a demarcação de novas terras para indígenas e quilombolas, além de criticar o trabalho da fiscalização ambiental.
Depois de eleito, enviou ao Congresso medida para fundir a pasta do Meio Ambiente com a Agricultura — mas a proposta foi rejeitada. Mesmo assim, alterações na estrutura do órgão fizeram com que o Meio Ambiente perdesse quase 20% de seus analistas. Já no Ibama, os sinais emitidos por Brasília e a falta de dirigentes nas unidades do órgão fizeram com que o número de multas caísse apesar do aumento do desmatamento.
Carlos Nobre é doutor em meteorologia pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), e já presidiu o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, além de ter integrado o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU, o IPCC.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil – Quão graves são os dados do Prodes publicados pelo Inpe nesta segunda-feira? Deveríamos estar preocupados?
Carlos Nobre – Devemos sim ficar bem preocupados. Os dados mostram um aumento considerável do desmatamento, na verdade uma continuidade no aumento que é observado desde 2015. (O desmatamento) deu um salto. Chegando perto de 10 mil quilômetros quadrados (desmatados), e um crescimento de quase 30% em relação a 2018. Logicamente que isso é bastante preocupante, e eu acho que não dá mais para continuar na inação. É preciso uma ação muito rigorosa agora para reduzir o desmatamento e as queimadas na Amazônia, que em grande parte são ilegais.
BBC News Brasil – Ao longo deste ano, falou-se muito sobre um estudo do senhor a respeito de um “ponto de não retorno” da Amazônia, isto é, um certo limite do desmatamento a partir do qual a floresta se tornaria uma savana, parecida com o Cerrado. O quão perto estamos disso?
Carlos Nobre – Olha, nós temos uma série de sinais (de problemas) vindos da região amazônica, (especialmente) do sul e do leste da Amazônia. A estação seca (nestes locais) está ficando mais longa. Se ela passar de quatro meses, atingimos esse ponto de não retorno. Está ficando mais quente também. Então são vários sinais de que o sul e o leste da Amazônia estão chegando perto desse ponto de não retorno.
Nossos cálculos indicam que se o desmatamento continuar nesta taxa — em toda a Amazônia, não estou falando apenas da (floresta) brasileira — ou se subir, temos de 15 a 30 anos no máximo antes disso, antes de ultrapassarmos irreversivelmente este ponto.
BBC News Brasil – E nesse caso, as consequências não seriam sentidas apenas naquela região.
Carlos Nobre – Impacta o clima da Amazônia, (mas também) impacta o clima de outros lugares da América Latina. Por exemplo, a floresta esfria o ambiente, mantém as temperaturas mais baixas. Se você desmata, as temperaturas aumentam aí qualquer coisa entre 2 e 3 graus (Celsius). Esse ar mais frio que passa pela Amazônia ele chega ao Cerrado, então você já teria um aumento de temperatura no Cerrado, que já é quente. Então prejudicaria a produtividade agrícola e a vegetação do Cerrado.
Há muitos estudos que indicam também que o vapor d’água que passa pela Amazônia alimenta as chuvas no sul da bacia do (Rio da) Prata (na Argentina).
E pode ter influência também nas chuvas em outras partes do Brasil, ainda que os estudos científicos ainda não tenham descrito todos os mecanismos em detalhe, mas pode ter impacto em outras regiões também.
BBC News Brasil – É possível estimar quantos desses 9.762 km² quadrados de desmatamento apurados pelo Prodes são fruto da derrubada ilegal?
Carlos Nobre – Olha, não dá para dizer em área. Mas o que é possível dizer, de forma qualitativa, é que aproximadamente 90% do desmatamento detectado pelo sistema Deter (do Inpe) são ilegais.
São de dois tipos. 40% disso é roubo de terra, grilagem. E o restante é desmatamento em propriedade privada, mas sem autorização legal para este desmatamento. Para você desmatar em propriedade privada, é preciso permissão (do órgão ambiental). Na maioria dos casos são desmatamentos que excedem o limite da reserva legal, ou invade uma área de proteção permanente, como uma nascente ou a margem de um rio.
BBC News Brasil – Algumas pessoas insistem em uma oposição entre preservação da Amazônia e a realização de atividades produtivas naquela região. Como é a dinâmica do desmatamento naquele bioma?
Carlos Nobre – Algo acima de 80%, ou perto de 90% do desmatamento na região é ilegal, como já dissemos. Então (o desmatamento) é muito controlado pelo crime organizado, pela grilagem, pelo roubo de terra. Então não tem uma verificação muito robusta, científica, que dê sustentação à ideia de que o desmatamento está reduzindo a pobreza (da população da Amazônia). De que está havendo um grande aumento da produção agropecuária, de que as famílias estão se beneficiando. Isso não existe.
Não existe relação entre o aumento do desmatamento e a redução da pobreza, a redução da desigualdade (na região). E eu não estou falando sobre o ano de 2019. Eu estou falando dos últimos 50 anos nos quais existe essa prática. Na Amazônia, o desmatamento está muito associado com o crime.
Alguns criminosos ganham (com o desmatamento). Alguns criminosos ganham muito. Mas grande parte da população não tem qualquer benefício. Você pega, por exemplo, uma grande fazenda de pecuária: ela contrata pouquíssimos empregados, que quando ganham um salário mínimo estão ganhando bem. Então não é um modelo que reduz a pobreza ou que traz bem-estar à população amazônica.
BBC News Brasil – O número de 2019, mesmo sendo muito alto, está abaixo das taxas que ocorriam até 2008. O que é que foi feito para baixar o desmatamento de lá para cá?
Carlos Nobre – O que aconteceu foi um plano chamado PPCDAm (Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal). Foi muito efetivo entre 2005 e 2014. Reduziu o desmatamento em 75%. Foi uma soma de três ações principais, mas a mais efetiva foi (o aumento da) fiscalização, com uma articulação importante entre Polícia Federal, Ibama, órgãos estaduais de meio ambiente, polícias militares, Ministério Público.
Essas ações de fiscalização de campo foram devidamente financiadas e começou a aumentar muito o risco do criminoso ambiental, reduzindo o desmatamento.
Não podemos esquecer que de 2005 a 2014 a produção agropecuária da Amazônia dobrou. Dobrou. Então produção não tem nada a ver com o desmatamento.
A outra política foi de incentivo aos municípios que reduziram o desmatamento, e punição aos que aumentaram. Isso teve um efeito muito bom. Prefeituras, câmaras de vereadores, todos passaram a se empenhar, porque tinha muitos benefícios vindo do governo federal.
E por fim, uma política de demarcação de áreas protegidas e de terras indígenas muito efetiva, que barrou o avanço dessa fronteira do desmatamento ilegal.
Essas eram as três “pernas” principais desta política. Se você perguntar o que o governo deve fazer se estiver falando sério a respeito de frear o desmatamento? Deve voltar a aplicar as coisas que deram certo. Principalmente a fiscalização. Tem que arrumar (dinheiro), tem que mandar o ministro da Economia (Paulo Guedes) abrir um pouco o cofre para financiar todas as ações necessárias à redução da ilegalidade.
BBC News Brasil – Em meados do ano, os veículos de imprensa estavam citando dados de um outro sistema do Inpe, o Deter, que já indicava um aumento no desmatamento. À época, o governo dizia que aqueles dados não eram suficientes para atestar um aumento no desmatamento.
Carlos Nobre – A informação estava correta. A gente sabe que o Deter captura entre 60 e 70% do que o Prodes, que foi lançado hoje, mostra. Portanto o Deter, pegando seis meses do Deter antes do lançamento do Prodes, ele mostrava 40, 50% de aumento. Era muito correto afirmar que haveria um aumento muito significativo do desmatamento, e o Prodes confirmou. Não há dúvida disso. O que foi feito lá atrás, que foi divulgado uma tendência de aumento em junho, julho, agosto, está absolutamente correto.
O Deter capturou a tendência de aumento.
BBC News Brasil – O dado que foi divulgado nesta segunda-feira (18) é um dado ainda preliminar. Os dados consolidados do Prodes só sairão no 1º semestre de 2020. Por que isto ocorre?
Carlos Nobre – A Amazônia, por ser coberta por vários satélites, possui centenas e centenas de imagens diferentes, a depender da resolução do satélite. E aí, para poder lançar isso logo agora em outubro, novembro, o Inpe pré-seleciona as áreas onde está sendo observado o mais intenso desmatamento. Aí ele mede toda aquela área e faz um cálculo estatístico e diz ‘olha, quando eu olhar todas as imagens, provavelmente vai ter este valor’.
E aí, às vezes, quando o Inpe processa todas as imagens, lá por abril ou maio, que ele lança o dado anual, esse dado às vezes é um pouquinho maior ou um pouquinho menor. O número de hoje é uma estimativa do que será o número final, quando analisadas todas as imagens. (A variação em anos anteriores foi de 2% a 7% para mais ou para menos, acrescenta o pesquisador).
BBC News Brasil