Especialista vê falhas em prevenção à violência por parte do Estado
Com um texto bem elaborado, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) permitiu que vários tipos de violência contra a mulher fossem denunciados, embora tenha vindo tardiamente, se comparada à legislação instituída em outros países, segundo a pesquisadora Wânia Pasinato. Uma das principais estudiosas do assunto, a socióloga afirmou que o atraso na publicação da lei foi uma espécie de trunfo para o Brasil.
“A Lei Maria da Penha demora, mas vem com uma vantagem: se inspirou no que há de melhor nas outras leis. Traz uma legislação que não é só do âmbito penal, mas que tem também um conjunto de diretrizes para orientar a política pública, que é a Política Nacional para Enfrentamento à Violência contra as Mulheres”, explica.
A Finlândia, por exemplo, desenvolve políticas de prevenção da violência contra a mulher desde 1998. Levantamento do país revelou que mais da metade (53%) das mulheres do país nórdico já foi vítima de violência física a partir dos 15 anos de idade. País onde o índice chega a um quinto (20%) das mulheres, a Áustria instituiu uma lei voltada a proteger as vítimas de violência doméstica em 1997.
Assessora técnica da Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres), Wânia lembra que conceber melhoramentos às leis de proteção aos direitos das mulheres levou tempo no Brasil.
“As leis eram muito voltadas à proteção da família, não se tinha um olhar muito cuidadoso para a situação das mulheres, das meninas. Isso começa a mudar a partir dos anos 2000. Revisa-se a legislação e, com isso, passa-se a mostrar que a desigualdade é a causa estruturante dessa violência. Era preciso abranger também a situação das mulheres no ambiente doméstico e familiar”, afirmou.
Falhas
Rio de Janeiro – Protesto no Dia Internacional de Combate à Violência contra a Mulher, pelo fim da violência contra as mulheres e contra o PL 5069/13, em frente à Câmara de Vereadores (Fernando Frazão/Agência Brasil)
Para a socióloga, as ações do Estado têm falhado, no que tange à prevenção da violência. “A gente aprova lei, muda discurso, mas a gente não consegue fazer com que estados e suas instituições se comprometam. Não consegue criar estruturas novas, fazer com que as instituições mudem seus padrões de comportamento e trabalhem em conjunto com a Justiça, em vez de fazer com que ela [a Justiça] aja sozinha, como se fosse a única entidade capaz de responder ao problema da violência”, disse.
A pesquisadora Ana Paula Portella, especialista há duas décadas na área de gênero, diz que se impressiona, até hoje, com a longevidade do ciclo de violência contra as mulheres.
“Sempre me impressiono muito com a durabilidade desse ciclo e como, de fato, prende as mulheres. Fica em torno de um conjunto de valores. Quando ele [o companheiro] a agride, dizem que ela não tem motivo para reclamar, que aquilo é o preço que tem que pagar para ter uma família, cuidar dos filhos, ter um marido provedor.”
Pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e do Instituto Datafolha mostrou que a violência perpetrada por um parceiro íntimo ainda persiste em todo o país.
De acordo com o estudo Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, cônjuges cometeram 23,9% das agressões e ex-cônjuges, 15,2%. Também figuram como autores irmãos da vítima (4,9%), amigos (6,3%) e pais (7,2%).
A vida de quem fica
“Até um tempo atrás, eu falava que o feminismo não me representava. Depois de algumas situações pelas quais eu mesma passei, comecei a abrir meus olhos para isso.” A afirmação é da contadora Bruna Spitzner, prima de Tatiane Spitzner, que foi encontrada morta no dia 22 de julho de 2018.
As suspeitas são de que o marido de Tatiane, o biólogo Luís Felipe Manvailer, a arremessou do 4º andar do prédio onde o casal morava, em Guarapuava, interior do estado. Os indícios são de que ele a arrastou, já sem vida, para dentro do apartamento, tendo fugido em seguida, pela BR-277, onde foi preso por policiais, após adormecer ao volante e perder o controle do carro que dirigia.
Em entrevista realizada no dia em que a ocorrência completava sete meses, Bruna contou, por telefone, como o fato a afetou. “Acho que ninguém precisa passar por isso. Foram registrados muitos casos [de violência contra mulheres]. Precisamos dar muito mais atenção a isso, fazer muito mais alarde. A gente tem que se ajudar, estender a mão uma para a outra. Quando vê uma mulher passando aperto na festa, na rua, tentar perder o medo de se meter, porque geralmente as pessoas não se metem, se calam, fecham os olhos.”
Segundo a contadora, as reflexões sobre a violência contra mulher surgiram quando ela mesma se viu em uma situação de abuso. “Percebi que era abuso quando consegui sair do relacionamento, percebi que era inferiorizada. Tive depressão pós-parto e, com a ajuda da terapeuta, consegui ver que eu estava num relacionamento abusivo. É muito importante isso, porque, às vezes, a gente não enxerga”, disse a contadora.
As redes sociais, mencionou Bruna, acabaram se tornando um canal para que vítimas compartilhassem com ela suas experiências.
“As pessoas sentem um carinho e vêm comentar, conversar, relatar as coisas por que passaram. Não foi uma nem foram duas mulheres, foram dezenas que disseram que tentaram fazer a denúncia, registrar a ocorrência, que dizem que chegam à delegacia e os policiais falam: ‘Você tem certeza? Foi só um empurrão. Você quer acabar com a vida dele [do agressor]?’. As mulheres estão muito desacreditadas. Faltam profissionais que acolham. Eu penso que a pessoa já passou por um trauma horrível, muitas vezes, por ameaças, e quando chega para denunciar, tiram a vontade, falam que não vai adiantar, que o processo vai ficar parado”, afirmou.
Auto-estima
Rio de Janeiro – Protesto no Dia Internacional de Combate à Violência contra a Mulher, pelo fim da violência contra as mulheres e contra o PL 5069/13, em frente à Câmara de Vereadores (Fernando Frazão/Agência Brasil)
Protesto no Dia Internacional de Combate à Violência contra a Mulher – Fernando Frazão/Arquivo Agência Brasil
Para a cientista social Anelise Gregis Estivalet, o amor-próprio é o elemento capaz de preservar a mulher de agressões que vão do plano físico àquelas mais sutis, como restrições no direito de ir e vir. “Se você tem meninas sabendo diferenciar uma conduta normal de uma que agride é um grande passo. Parte disso é a mulher entender que o mais importante é ela amar a si mesma e que ela tem importância”, ponderou a professora.
Segundo Anelise, todo agressor trata a mulher como objeto. “Feminicídio é quando você não vê a mulher enquanto pessoa, e sim como objeto. Uma coisa que pode ser objeto de satisfação, de ciúme e de relação de poder. Muitas mulheres imaginam que, se forem propriedade de alguém, elas vão ser protegidas, e é exatamente o contrário, porque aí dão o direito de que façam com ela o que quiserem”, argumentou.
De acordo com Ana Paula Portella, diferentemente das mulheres que vivem nas cidades, as vítimas da zona rural residem em lugares quase inabitados, o que dificulta a detecção do ciclo de violência por parte de amigos, familiares e pessoas do seu círculo social. Algumas delas, ressaltou, não chegam a ser mortas pelo companheiro, mas ficam mais suscetíveis a crimes como estupro marital.
“Elas podem viver o casamento inteiro com agressões físicas, sexuais, sem que necessariamente leve à morte, mas tem menos possibilidade de sair da situação. Na área urbana, a mulher pode viver o mesmo tipo de abuso, mas tem mais ferramentas, como delegacia, vigilância de amigos, família e colegas de trabalho que podem detectar sinais para que procure ajuda.”
Relacionamento tóxico
Jovens decoram com grafites temáticos os muros do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher em lembrança ao Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher (Fernando Frazão/Agência Brasil)
Grafites temáticos lembram o Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher – Fernando Frazão/Arquivo Agência Brasil
A Organização das Nações Unidas (ONU) publicou, na última quinta-feira (21), uma lista com cinco recomendações para se adotar na luta contra a desigualdade de gênero.
Entre as maneiras de romper com ciclos de violência, a organização cita a mudança de linguagens que favoreçam a perpetuação de esterótipos de gênero e o compartilhamento do cuidado com a casa.
De acordo com dados do 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2017, 4.539 mulheres foram assassinadas, taxa que representou um aumento de 6,1% em relação ao ano anterior. Do total de ocorrências, 1.133 foram classificadas como feminicídios.
Ainda foram computados naquele ano 60.018 estupros, crime que apresentou aumento de 8,4% em relação a 2016. Ao todo, houve 221.238 casos de lesão corporal dolosa enquadrados na Lei Maria da Penha, uma média de 606 casos por dia.