O homem se fez homem a partir da energia divina. Andou pela terra saturada de enganos, de beleza que a rusticidade do homem ainda não sabia captar, entender, sentir. Havia a formosura dos rios, a lindeza das árvores e dos frutos paridos no amor, nos desejos de realizações. Os campos floridos afetavam os olhos dos humanos, mas não havia capacidade de entendimento; as flores atingiam a visão, mas o lirismo passava longe dos machos, das fêmeas, das crianças. As flores eram coisas coloridas que impediam a passagem.
Nas cavernas, iluminadas por uma tocha, nas noites que representavam a morte do dia, os homens sexualizavam as mulheres, ato que os levavam às explosões de algo dentro do corpo, um instante de gozo e morte, sem no entanto, oferecer qualquer entendimento e compreensão.
Aos poucos descobriram que a sua comida estava dentro do corpo dos outros animais e, por esse motivo idealizaram toscas armas. Faziam emboscadas, andavam ocultando os roídos dos movimentos, atacavam os animais, lhes devorando a carne quente e o sangue borbulhante.
Na outra extremidade do processo, encontravam folhas gostosas de se comer, frutos bons para ser saboreado, e assim a vida continuava. O sexo presente dia e noite diante de seus olhos, dos seus narizes, das suas mãos, era o pedaço da existência que a satisfação se realizava pelo lado avesso do corpo, por dentro, nas proximidades do órgão que bate e rebate no interior de cada um.
Nos aparecimentos da lua, os homens dividiram-se em grupos e partiram de lugares onde não entravam raios e trovões. A morte, entre grupos distantes, tornou-se uma constante, morte por combate, dilaceramentos, ódios que foram fabricados dentro de cada um, roubo de crianças e mulheres.
Um menino, nascido como se nasce em qualquer grupo, sentiu um estado que ninguém sentira antes, vontade de chorar, de cantar o voo dos pássaros e a suavidade das borboletas; percebeu que havia um estado de comoção na profundeza de si mesmo, só podendo ser explicado por algo que está além das estrelas. Nascia naquele instante um pequeno poeta que teve a cabeça esmagada pelos demais membros do grupo, por se tratar de um menino aluado.
A energia divina provocou um dilúvio, uma inundação, procurando lavar todos os humanos por dentro, portanto não usou água, inundou a terra de um caldo vermelho como sangue chamado psique; esse caldo divino espalhou a análise, a penetração espiritual, o balando do que cada um fez e desfez. Esse tempo durou quarenta dias e quarenta noites, ninguém morreu, pois, a energia divina é incapaz de matar a sua própria criação.
Depois do dilúvio psíquico e espiritual, o homem partiu em busca do significado de sua existência, como um cavaleiro procura a sua amada e, nessa busca incessante, amou e odiou, descobriu muitos segredos da terra, dos oceanos, dos rios, das rochas; inventou cidades que se engravidaram, gerando estados e nações, inventaram as moedas, a tecnologia, o voo dos bêbados e dos malabaristas; conversaram com os astros, com as estrelas, mas não conseguiram definir o amor, o ódio, a guerra e a paz.
As epidemias nunca deixaram de existir, doenças que surgem em algum lugar, sempre embricadas na fome, na desigualdade, na pobreza, na ignorância, no desrespeito, na ganância, na destruição da natureza. O nosso século, sintetizado numa grande ópera, onde os conflitos entram no palco do mundo e os atores representam a impossibilidade da construção de uma confraternização; esse pobre e rico século viu nascer uma pandemia que, de tão assustadora, assemelha-se a um folhetim operístico, cantado por vozes de um coral completamente desconhecido. A música dessa ópera causa medo, terror, isolamento, insegurança e morte.
Em meio aos corações que batem no mundo todo e numa noite gerada pelo espasmo, a criança dorme em seu leito espelhado pela suavidade, seus sonhos revividos nas cores do arco ires são quebradas por rajadas de metralhadoras, pelo olhar incontido de um míssel desorientado, é o lobo mau chamado Putin invadindo a Ucrânia, provocando um conflito que desfaz todos os semblantes das faces da história antiga e moderna.
Nós todos, sensíveis ou não, estamos andando sobre as nossas lágrimas mais sentidas, enquanto lobos maus como Putin, Bolsonaro e tantos outros, montados em suas vassouras, realizam o Sabá bebendo taças de consciência das crianças nascidas e daquelas que ainda nascerão. E o mundo silencia-se.
Prof. Carlos Roberto Rodrigues