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terça-feira 24 dezembro 2024
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Leitura de Taubaté – Tancredo Neves, o homem que entendeu a facada do Bispo

Os processos históricos nascem em ninhos arrumados em qualquer pedaço de terra. Quando os militares tomaram o poder, depois de muito pensar e ordens unidas apressadas, decidiram controlar as finanças dos municípios e dos estados para, usando a rédea econômica controlá-los culturalmente, politicamente, sexualmente, ideologicamente.
A noite lançou a lua sobre o telhado do bar “Bacalhau do Zeca”, onde os lideres do movimento sindical, gerado no ventre do ABC, entre bebidas, cigarros, papeis, escritos desanunciados, preparavam novas greves, paralizações, campanhas para aumentar o numero de participante na luta.

Lá no nascedouro de 1982, os prefeitos reuniram-se, criaram a chamada “Frente Municipal Nacional”, solicitando uma recomodação na distribuição de verbas e poder aos estados. Os militares suaram, tremeram, sentiram que o poder estava apresentando desgastes. Com as mãos trêmulas escreveram uma emenda meio às pressas, redistribuindo mais recursos aos municípios e estados.

Um pouco antes, tempo raquítico, as lideranças sindicais reuniram-se no Município de Praia Grande, no litoral paulista. Eles tomaram um banho de mar, fogo paulista, e uniram todos os sindicatos sob uma só sigla CUT, ou seja, Central Única dos Trabalhadores. O governo militar decidiu não reconhecê-la, mas as ruas, os cais dos portos, as zonas de prostituição, universidades colocaram-na no peito coberto por camisetas. Organizaram comícios, passeatas, campanhas exigindo eleições diretas para presidente. Discursaram no Rio, São Paulo, nos bancos escolares. Os militares assemelharam-se a ratos assustados. Os quarteis contavam e recontavam os armamentos; os teatros ponteavam peças políticas, o cinema filmava papagaios marchando de costas, os festivais dispararam as flores que foram esquecidas.

O Brasil parou, o tacho de pamonha talhou no fogo, o macarrão perdeu o ponto e a emenda de Dante de Oliveira, texto que propunha mudanças na Constituição e eleição direta para presidente, não passaram no Congresso, fora rejeitada pelos partidos azeitonados na salada verde oliva.

Tancredo Neves, o homem que, em sua extensa carreira política, especializara-se na nobre arte da negociação, resolveu concorrer a presidente no Colégio Eleitoral, isto é, sistema de eleição indireta. O mineiro sonhou com tudo o que existia para ser sonhado; costurou acordos, cortou ternos e desenhou vestidos novos para o país.

José Sarney abandonou o partido comandado pelos militares e lançou-se na aventura de Tancredo, participando do projeto na condição de vice-presidente.

Os militares dormiram, sonharam com Castelo Branco, homem humilde mas, que de uma hora para outra, pensou em transformar-se em presidente permanente, eternizado, mesmo sem pescoço; nos sonhos que foram se tecendo, viram Costa e Silva vibrando nas mesas de cartas, de truco; mesmo tentando mudar a estrada dos sonhos, viram Médice completamente perdido na Transamazônica do nada; um general, não sabemos o nome, sonhou com Figueiredo montado no cavalo de São Jorge, lutando com um gato sem o mínimo pedigree, dentro de um buraco lunar. No despertar sonoro do batalhão, ao acordarem, os militares perceberam que não havia ninguém, não existia um nome de peso para concorrer com Tancredo Neves.

Procuraram nos quarteis, nos postos de guarda, nas áreas de segurança, nos canos enferrujados dos canhões. No entanto, no interior de uma velha jaqueira, no reino do faz de conta, apontado por um feixe de luz, acharam o grande Paulo Maluf, um homem inteligente, honesto, trabalhador, decente e dependendo do ângulo observado, heroico.

A eleição ocorreu na circulação sanguínea dos brasileiros; a esperança retornou aos berços dos que nasciam naquelas circunstâncias. O mineiro Tancredo Neves obteve 480 votos; votos contados e recontados; Paulo Maluf, filho do Dom Quixote nacional, conseguiu 180 votos. Os votos de Maluf exalavam vapores de um perfume fabricado no cano de coturnos dilacerados dos generais.

O povo cantou “Na boiada já fui boi”, “Estou só e não resisto, muito tenho pra contar”, “Você que inventou este estado, e inventou de inventar”, “Pelos campos há fome em grandes plantações…”, “E acreditavam nas flores vencendo o canhão”; outros, no entanto choraram apenas porque deviam chorar.

Fora da história, nas paredes lisas de magia, Tancredo sabia que uma doença devastadora aniquilava o seu corpo. No silêncio, sempre no silêncio, dizia aos médicos: “Eu preciso viver até a posse; depois, façam de mim o que quiserem”.
A festa ainda estava nas ruas, naquele 14 de março, de 1985, véspera do dia da posse de Tancredo Neves. O ar, bonito e transparente abandonou o corpo do presidente; a tontura angustiada pressionou-lhe os sentidos, o centro cirúrgico não quis atentar para o que ocorria, um tumor rompera-se no abdômem do presidente.

O país parou, as flores abandonaram as suas cores, ao lado de um portãozinho de madeira. Veio a segunda cirurgia, e o poeta cantou: “Voa condor, que a gente voa atrás”. Veio a segunda, a terceira, a quarta cirurgias; e o poeta continuou cantando: “Quando voa o condor, com o céu por detrás, traz na asa um sonho, com o céu por detrás”.

Após a última cirurgia ninguém observou a presença do poeta, fundido à dor colada no teto: “Há, que voo do condor no sol/trace a linha da nossa paixão/ eu quero quem seja/mostrada ao meio da rua e rolando no chão/há, que a gente despedace a luz/há, que Deus seja o que quiser”.

O Brasil despediu-se de Tancredo, ao entardecer. E o tempo girou. Hoje o Brasil não ouve a voz do poeta, mas ouve a voz da mentira, arrogância, loucura bravia, inconsequência, morte!

Mas o condor espera o seu momento!

Prof. Carlos Roberto Rodrigues