Em novembro de 1906, Lobato escreveu várias cartas a sua noiva Purezinha. Em todas elas, ou em sua maioria, o artista estava sufocado pela saudade; mostra-nos uma sensação de dor que vinha de longe, vinha misturada ao medo da perda, da distância que os separavam, da falta de alguém com a qual se convive e, por algum motivo está longe. Fala que a saudade habitava em seu coração como um inquilino crônico, um inquilino sempre presente, mesmo na ausência.
No império romano, existência concretizada na luta, na conquista, na invasão, no sangue, no desaparecimento de centenas de pessoas, havia a palavra solitas, um termo que andou caminhos, engravidou significados; partiu de uma acepção primária, indicando o estado solitário, até chegar à palavra saudade.
Nessas andanças que envolviam todas as saudades no afago da solidão o escritor de Taubaté faz referência a seu quarto, um espaço singular, principalmente durante à noite estampada nas alturas; noite caminheira do silêncio orquestrado por centenas de grilos raquíticos, zunindo na lonjura dos ouvidos; neste instante vê o retrato da noiva sobre uma pequena cômoda. Aquele retrato representou a mobilização de um projeto que procurava despertar a memória, buscar lembranças para poder viver perto de alguém que está longe.
E então, como se estivesse sobre um tapete mágico, lembrou-se do olhar da noiva, das valsas dançadas na varanda da casa, dos vestidos que encantavam sua lembrança, da blusinha cor de rosa, do beijo que não se preocupou com o horário.
Os homens nascem rompendo mundos desconhecidos, engatinham sobre pernas trêmulas, andam, correm, brigam, aprendem coisas, choram e cantam. Assim, a vida em seu desenvolvimento é repleta de partidas e chegadas, amores que nascem na areia do mar e calam-se nas nuvens que estão no céu. Nessa busca da saudade, como uma manifestação da memória, Monteiro Lobato confessa o seu desespero quando, após visitá-lo em Taubaté, Purezinha parte para São Paulo onde morava. O criador de mundos imaginários retorna à sua casa num estado de estupidez incalculável, sente-se apalermado, avarento. O seu eu assemelha-se ao interior de alguém a quem roubou o seu tesouro, toma forma de um rei, a quem destruiu o seu trono.
A sua primeira reação é buscar o seu quarto, não falar com ninguém, não ouvir as batidas à porta, apertar os cigarros nos dedos e fumar…fumar…fumar. Lobato, ser vivente deste e de vários outros momentos, sente a imperfeição do presente, sente o cheiro desconfortável deixado pela ausência e, meio alucinado mergulha no passado e no futuro; tenta criar uma receita para trazer o passado de volta; segura a caneta, pensa, grita, iniciando nova carta a noiva que acabara de partir.
Essa correspondência é muito importante; Lobato confessa-lhe ser autor de um diário, uma espécie de lenço escrito com suas dores, um registro desvairado de suas angustias, mas imensamente profundas: “…estas palavras que escrevo vejo-as saírem tremulas da pena, porquê vejo-as através de lágrimas que rolam dos olhos sobre o peito da camisa…choro!”.
A saudade existente no escritor funciona, em suas cartas de amor, como uma máquina do tempo que, bem ou mal, o leva ao encontro de sua amada. O grande problema, fato corriqueiro na obra do autor, é a constatação da dualidade da linguagem. A máquina do tempo, movida pela memória o leva até a mulher amada, porém, as mãos tremem, perdendo um pouco a coloração, levando- a escrever: “que carro de boi é a palavra escrita. As ideias afluem aos borbotões, aos montes, aos milhares, e o maldito carro só leva ao papel uma pequenina quantidade.” Tentando equilibrar o universo existente entre o pensamento e a escrita chega a seguinte conclusão: “nem a palavra falada dava vazão ao que sinto. Só gritando, apertando-te nervosamente contra o peito, devorando-te de beijos.”
As cartas de amor escritas por Lobato representam mesmo presas a um contexto, o caminhar de um inebriado em direção a mundos aprisionados pela saudade. Esse inebriado, fixa datas registradas na sua vivência, caligrafias deixadas num guarda roupa, desenhos, perfumes, abraços, olhares, trechos de conversas, caricias, promessas, cheiros, música e sorriso. E, pouco a pouco a vida retorna a sua realidade, e o coração volta a bater compassadamente no terreno firme e sadio.
Prof. Carlos Roberto Rodrigues