Eu sou um rato real, já vivi em várias cortes, vi coisas fora do enquadramento de qualquer olhar, de bicho ou gente.
Até hoje não consegui entender a fuga da Família Real de Portugal ao Brasil. O rei, homem além das medidas estabelecidas correu atleticamente, assumindo o jeito de um barril rolando morro abaixo. A rainha Carlota, despenteada e de camisolão, balançou a peitaria em direção ao navio. O meu tio, rato estudado, suicidou-se, pulando nas águas sujas do mar, ao vê-la. A rainha mãe, louca, com um urinol prateado na mão direita, procurando receber parte do salário dos funcionários da corte; ela praticava um crime chamado de “rachadão”, isto é, recebia metade do salário dos funcionários oficiais, para comprar chocolate. Naquela noite, a pobre desmiolada, recolhia o dinheiro no urinol.
Os navios partiram na amplidão da noite. Eu, rato real, fiz uma reunião com os ratos do primeiro escalão, comandados por um rato general, responsável pela saúde da comunidade rateal. Dessa reunião saiu um documento em forma de poesia:
“A vaca será a musa sobre o mar,
Antes que a corte desperte de seus sonhos coloridos,
Mamaremos uma porção de leite branco, mais erótico do que o olhar da bela psiquê,
Dos porcos, seres passivos, lindos, cantores, sugaremos umas gotas de gordura, amém!
Das cabras, animais desenhados no Olimpo, beberemos a espuma das tetas “tesóticas”, borbulhadas de leite.
Das galinhas, mulheres de galos cambaios, chuparemos a “ourificação” das gemas,
Para sempre, amém até o infinito”!
O meu primo, filho do Antenor ruaceiro, rato lindo e preto como eclipse eterno, tornou-se o controlador da comida real. Da carne salgada, ele caçava pequenas larvas comestíveis; dos biscoitos, dormindo dentro se barris, no porão, o primo prendia vermes deliciosos; das lentilhas e ervilhas, recolhia quilos de carunchos lisos, brilhantes, rechonchudos e crocantes.
Na sala das dores, localizada abaixo do nível da água, destinada a pequenas e grandes cirurgias, principalmente amputações, o rato Alfredo recolhia o sangue escorrido, embalava-o em sacos de trapo e, na dentada da noite, trocava o sangue com umas frutas chamadas maracujá e marmelo, com os dráculas que habitavam a colônia.
O rei Dom João desembarcou no dia 23 de janeiro de 1808, numa terra chamada Salvador, que fora a primeira capital da colônia. Saudaram o rei com tiros de canhão, os sinos das igrejas violaram o ar, o vento, a quietude do céu.
A cidade de Salvador era dividida em dois mundos. Na cidade baixa moravam os pobres; brancos desarranjados, negros e mulatos. O mau cheiro vivia colado ao chão, às praças, às casas. As fezes, a urina, corriam pela rua deste mundo, sem qualquer atitude dos moradores. As lojas, imundas, vendiam tudo, de bacalhau a botão de roupa das mulheres, dos homens. O rato Tadeu, jornalista do navio, escreveu uma palavra linda para denominar a cidade baixa: Excremento Vivo!
A cidade alta era habitada pelos homens ricos, senhores e senhoras passeavam nas praças limpas, jardins bem cuidados, chafarizes enobrecendo a vida vista pelo alto, igrejas lindíssimas, torres penetrando nas nuvens, palácios, biblioteca pública, o Teatro São João, namorados, paqueras, casamentos, histórias de amor.
O rato Tadeu, nosso jornalista, registrou a primeira burroceata da história contra o rei João VI. Dom João, num ato meio impensado, criou à primeira “Escola Médico-Cirúrgica” de Salvador, escola sem prédio, professores, laboratório, mas tranquilizou os agitadores da burroceata da Bahia e, ao mesmo tempo, criou uma metodologia destinada a elaboração e criação dos projetos de obras públicas no Brasil.
Um borroceador apelidado de Paz nos Bolsos de todos eles.
Prof. Carlos Roberto Rodrigues