A China esteve, por muito tempo, envolvida em mistérios, lendas, mitologias fantásticas. O gigante da Ásia Oriental já foi um dos maiores centros comerciais do mundo, milhares de navios e embarcações cruzaram os mares em busca dos famosos produtos dos chineses.
Além dos produtos a viagem à China provocava alucinações desmedidas, a percepção de uma navegação arriscada, possibilitando o enfrentamento de oceanos desconhecidos e aventuras plantadas na imaginação delirante de uma época.
Por volta de 1330, um galeão pirata desembarcou homens, ratos, pulgas em solo chinês. Houve luta, houve mortos e feridos, e uma epidemia de peste bubônica alastrou-se com rapidez impressionante pelas terras do grande mercado marítimo. Milhares de pessoas foram contaminadas. Homens, mulheres, crianças morreram no interior das casas, nas ruas, praças, becos perdidos no acalanto das noites.
No ano de 1347, vários navios mercantes deixaram a China com destino às terras da penínsulas itálica. Os navios traziam mercadorias diversificadas, marinheiros de todos os continentes e a bactéria da peste bubônica. Ao desembarcar em Florença, em 1348, centenas de marinheiros estavam contaminados; havia, também, inúmeros mortos no porão das embarcações.
A peste bubônica, batizada de peste negra devorou a cidade de Florença e, de lá, partiu em direção das demais terras da Europa, matando cem milhões de pessoas.
Em Florença, nessa época, morava a família de Giovanni Bocaccio que, após perder os pais na pandemia, resolveu retirar-se para o interior da cidade, isolando-se, em quarentena. Bocaccio, levado pelas ondas dos acontecimentos, tornou-se uma espécie de jornalista, observador direto da pandemia. Descreveu um estado de medo, o galopar da morte, a tragédia e o desespero.
Em seu isolamento, Bocaccio escreveu Decameron, uma das mais importantes obras da literatura universal. Em Decameron, dez jovens de Florença, sete mulheres e três homens, reúnem-se na Basílica Di Santa Maria Novella e decidem fugir da contaminação da peste negra, refugiando-se em isolamento numa vila no campo, lugar calmo, silencioso, afastado da civilização. Para passar o tempo, resolveram fazer uma roda de contação de história, cada jovem contaria uma história por dia, ou seja, num total de dez histórias diárias. No total de dez dias de isolamento, contariam cem histórias.
As histórias nasceriam na temática que envolve o mundo terreno, os espertos passando a perna em alguém, muito sexo, maridos traídos, mulheres ardentes e sedutoras, padres e freiras pervertidos, amor, sensualidade, erotismo. As histórias, na verdade, apontavam o efeito imediato da pandemia sobre a sociedade humana. Uma parte da população entregavam-se aos prazeres da vida, a outra parte, morrendo de medo antecipado buscava um caminho através da fé, da crença, da espiritualidade.
O registro sobre o comportamento social, em plena idade média, remete-nos a uma verdade triste mas saliente: as pandemias marcam o mundo a partir do seu nascimento. Elas chegam sem avisos, sem festança, sem discursos ou shows retóricos; chagam para ser um marco divisório de um antes e um depois. Após uma pandemia, o mundo se transforma, se recicla, evolui, acelera a produção científica, apressa os meios de produção, transformando os ódios pessoais e coletivos em amor.
Depois dorme por alguns séculos e a sociedade continua sempre a mesma.