A carta de Lobato escrita em outubro de 1906 aponta para fatos esclarecedores da vida do escritor. No momento do recebimento de uma carta de Purezinha, Lobato escrevia uma peça jurídica, peça acusatória contra dois assassinos de Taubaté, os irmãos Patrício. Segundo o escritor ele escrevia o trabalho para o júri, procurando ao mesmo tempo ler a correspondência da sua amada. Em meio a tais acontecimentos recebe a visita de um tal de Davizinho que, gentilmente, viera parabenizar o escritor pelo noivado com Purezinha. O visitante conta uma história sem a mínima graça ou interesse, fuma um cigarro muito fedido, e cospe no chão.
Na resposta do escritor há um trecho muito interessante, Purezinha sonhara com o escritor e, nesse sonho afirma que o noivo é um apaixonado indiferente, afirmação que Lobato concorda tranquilamente, pois em relação aos acontecimentos do mundo, a opinião dos outros, ao que acontece nesse município, não dá realmente a mínima importância. Ainda, nesse dialogo epistolográfico, a noiva diz não entender porque, em sua carta antecedente, Lobato a chamara de feia. O escritor explica-lhe que não escreveu a palavra feia, escreveu a palavra fria, muito fria, pois não se abria nas cartas, não lhe confessava seu mundo interior, não lhe confessava o sentimento de amor, não escrevia cartas longas, somente minúsculos bilhetes.
Outro momento interessante na resposta de Lobato acontece quando o escritor observa uma cena produzida por imigrantes italianos. Era, segundo o escritor, um domingo típico de Taubaté, Domingo lerdo, arrastado, cheirando devotos a caminho das igrejas. Em frente à janela da casa do escritor, havia um bar chamado “Botequim dos Operários”, propriedade de um italiano chamado Canella, sua mulher e duas filhas. Aos Domingos, sem exceção, o italiano cismava de exorcizar as desgraças ocorridas durante a semana e, para executar o seu esconjuro pessoal, surtava feio.
O primeiro movimento dessa peça de teatro domingueira, Canella começava a gritar, sempre em italiano, palavras vindas da Divina Comédia Popular, berrava sons da época dos castelos medievais, esmurrava as paredes furiosamente, blasfemava contra todos os santos, bufava, espumava pelos cantos dos lábios.
O segundo ato dessa peça mambembe se passava na rua, na calçada do bar, o italiano voltava-se contra a mulher e suas duas filhas. As mulheres gritavam palavrões obscenos, gesticulavam, berravam; a hombridade do italiano era questionada, a sua fúria era evidenciada, a sua obesidade balofa era cantada e decantada, as duas filhas apelavam, uivando como lobas medrosas e famintas.
Na janela, rindo o sorriso dos deslumbrados, Lobato e suas irmãs pareciam não acreditar na cena que estavam vendo e assistindo. No terceiro ato dessa comédia de rua, Canella pegava uma tranca de porta, de madeira e ferro e, como um desvairado partia em cima da mulherada. A mãe disparava sem direção; as filhas desapareciam como vento agoniado. O italiano, com o cachimbo no canto da boca, gritava: “corra corja de perturbadas. Se voltarem, parto-as uma a uma, com essa tranca de porta”.
A cortina fecha-se desconsoladamente, o Domingo encolhe-se dentro do seu calendário e meia hora após o ocorrido, Canella reaparece abraçado à mulher e suas duas filhas, morrendo-se nas juras de amor eterno.
De volta à carta a Purezinha, Lobato confessa que apanhara uma constipação horrível em sua estadia em São Paulo, onde fora viver seu amor na prática, escreve uma palavra, tosse, escreve outra palavra, espirra no papel, borrando tudo.
De volta ao seu mundo taubateano fala do seu investimento na plantação de arroz, no bairro de São Roque, onde tem vinte camaradas. Conta que pedalava quatro quilômetros para fiscalizar os trabalhadores e evitar possíveis roubos.
No final da carta, mergulhado na sua fixação perpétua, ocorrência comum em toda correspondência, pede à Purezinha que lhe escreva carta longa, extensa, confessando-lhe detalhes do seu mundo interior.
Prof. Carlos Roberto Rodrigues