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sábado 30 novembro 2024
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Leitura de Taubaté – O amado amor

Há momentos em nossa existência que nos traz a imagem de alguém, antecessor de nossa história, ao nosso presente. Hoje acordei pensando em André Gorz, um homem que andava, respirava, pensava, amava, sorria e muito de vez em quando, chorava. Gorz nasceu em Viena, Áustria em 1923, um tempo que ainda respirava as consequências da Primeira Guerra Mundial, um evento tingido pelo sangue, medo, violência, desespero. A morte acostumara a andar pelas ruas do mundo recolhendo, em cada esquina, os comprometidos com a alienação desprovida de identificação.

Na sua infância e juventude pisou o chão demarcado por Mozart, respirou o mesmo ar que deu vida a Beethoven e a sua “sonata do luar”; mergulhou dentro de si mesmo ao passar em frente da casa onde Freud revelou os segredos mais profundos da alma aos homens e ao mundo.

Para não servir ao exército alemão de Hitler, refugiou-se na Suíça, onde se graduou em química. Após a guerra, momento de um mundo insólito, deslocou-se para França. Paris, por tendência e vocação, neste instante, banhava-se nas águas do existencialismo de Jean-Paul-Sartre.

As paredes das casas francesas embalavam-se no existencialismo, as carruagens de luxo moviam-se no balanço do existencialismo, os artistas multiplicavam os ditames da vida pela face de Sartre. André Gorz despertou a sua ansiedade pela vida indo de encontro ao pensamento de Sartre. Nas horas entradas no universo da noite, passou as mãos pelo coração e destronou as fundamentações que justificavam a persistência do capitalismo, enquanto compromisso com o lucro desenfreado. Da quietude do seu quarto passou a olhar o caminhar da sociedade, analisou o andamento orientado pelo desvario do consumismo sem norte, isento de qualquer principio de racionalidade.

Num segundo momento, o enfoque é deslocado para se pensar no capital como resultado de uma pulsão do saber, capital valorizado pelo conhecimento, o que provoca uma mudança radical no processo de escalonar o lucro, o que significa, de uma forma mais clara, lucrar pela tipificidade dos meios produtivos.

No giro que o mundo dá em torno das pessoas e dos acontecimentos, em uma noite gelada, esbranquecida pela neve, noite respirada pela solidão, André Gorz conheceu a jovem Dorine, mulher linda, alegre, sorridente, pensadora das coisas do presente e do futuro. O sentimento, movido pelo calor da alma partiu do olhar, das mãos, da suavidade do rosto, da chama interior que, pela própria força, jamais se apaga.

Namoraram na temperança visível dos parques públicos, leram-se na fila do cinema, enquanto compravam bilhete para assistir ao filme: “Romance, Sorriso e Música”; confessaram-se olhos nos olhos, na porta da igrejinha da Nossa Senhora das Virtudes; perderam a respiração na passagem misteriosa do bonde noturno.

O amor de André por Dorine, foi marcado, estigmatizado, pela busca das sintonias que lutam entre si, procurando compor um terreno sólido, vivo; composto de calmarias e turbulências. A luta para entender, interpretar as diferenças de cada um; sondar as guinadas produzidas pelas similitudes e, no desespero, procurar o ajuste das duas formas de existir, exemplifica os movimentos feitos pelo amor.

A cada dia, nos minutos temperados pelo “existir amando”, o amor solidifica-se nas almas assustadas, um coração busca o calor do outro coração, procurando assumir, loucamente a existência do outro, uma espécie de barcos navegantes nos mistérios que estão além do mar, próximos ao infinito.

André e Dorine exemplificaram, com lances do amor estampados em flash da vida, a linguagem amorosa dos homens e mulheres, filhos e filhas de uma precariedade imensurável, vivendo numa terra marcada pelo conflito estabelecido pela incompreensão. E, assim, revelaram a existência do amor como a construção de um lugar, um espaço dentro de cada ser humano, possuindo linguagem própria, gestos próprios.

A chegada do ano de 1990 marcou a vida de André e Dorine, ambos retiraram-se para uma casa de campo. Ele estava com 84 anos e Dorine com 82. Dorine, a partir desse momento sentiu a chegada da noite, fora diagnosticada como portadora de uma doença degenerativa e um câncer. André, olhar mergulhado na imensidão incerta dedicou cada segundo de sua vida a cuidar de Dorine.

Em 22 de setembro de 2007, André escreveu num cartaz: “avisem a polícia” e o colocou na porta da casa. Deitou-se ao lado de Dorine, não precisou contar carneiros; tomaram uma injeção letal e, juntos de mãos dadas partiram dessa vida…sempre de mãos dadas.

Prof. Carlos Roberto Rodrigues