Em carta de 1906, à noiva Purezinha, Lobato nos dá umas pinceladas do seu cotidiano em Taubaté. Fala da compra de umas casas e vários terrenos, negociações que levam algum tempo; comenta a sua nomeação à Promotoria de Areias, um buraco que o entristece, porém, lá no fundo do coração acredita numa remoção rápida e conciliadora; comente a vida noturna Taubateana referindo-se ao Jardim da Estação onde uma banda musical se apresenta.
Em carta de 21/11/1906 confessa à sua amada viver num paul (pântano) que é Taubaté. Dois motivos o impedem de afundar na lama, as recordações da noiva e o convívio com os livros. Procurando preencher esse vazio existencial, o escritor mergulha no seu projeto de ficção, tecendo o seu futuro idealizado: “Morar nas novas terras do Sul, ele e Purezinha, recém-casados, trabalhando a quatro mãos no crochet da felicidade conjugal. Que bom será! Céu, água e nós, de mãos dadas almas enleadas uma na outra, ligadas pela mais absoluta comunhão de ideias, sentimentos, instintos, desejos… que bom será!”.
Na conclusão dessa carta, expõe-nos a sensibilidade da noiva em relação à poesia, apresentando-nos a imagem de uma mulher mais apegada à objetividade da vida, ao pragmatismo revelado pelos dias e pela vivencia em São Paulo, à praticidade dos novos tempos, observações que o levam a questioná-la: “se não fizermos poesia agora, quando a faremos? Estou a ver-te dizer: “Nunca. Para que poesia?” – “para que poesia?” que pergunta, filhinha… pois não é ela o aroma da vida humana? Vida que se não poetisa é arroz doce sem baunilha, nem canela, nem açúcar: um mingau insipido…”
Em carta de quinta feira, de 1906, não há indicação do mês, Lobato comunica à noiva que lhe envia um “Minarete” (jornal) onde há um artigo meu. Comunica-lhe que esteve na casa de uma amiga de ambos e, vertendo a sua fantasia interiorana, extravasa o seu lado de mexeriqueiro assumido: “estive ontem em casa das… M. emagreceu bastante e está extremamente pálida. G. desforme de gorda, com papadas. B. um vara pau; a E. uma porta, um portão de bronca e tola. G. manda-te lembranças.”
Em carta de 1906, escrita em Taubaté, Lobato encoleriza-se ao encontrar nas ruas da cidade a Senhora Dona J., que lhe faz uma série de perguntas indiscretas e maldosas: “o Senhor não deve escrever o que escreve à Purezinha… Não sei que, não sei… o seu diário… nem tudo se diz…”
O criador de um mundo paralelo a este universo encheu-se de raiva, ódio, engoliu babas de fúria e, vermelho como um tie-sangue, perguntou-lhe se Purezinha mostrara-lhe as suas cartas, o seu diário, enviados à amada.
Dona J., muito esperta não respondeu que sim nem não, apenas evadiu-se do questionamento, deixando tudo no ar. Lobato escreve à Purezinha movido pelo desconforto de um ataque de nervos: “…Tu sabes que essa imbecilíssima criatura, a mulher mais irritante e estúpida que tenho conhecido até hoje nunca me entrou na simpatia. Por mais que tenha feito nunca pude aturar a sua intolerável boçal suficiência dogmática em todos os assuntos.” Esse acontecimento avolumou-se, apossou-se dos pensamentos do escritor, levou-o a deduzir que Purezinha mostrara a suas cartas a Dona J., violara, pois, a confiança existente entre os dois. Em carta, reflexo do seu estado interior, desabafa: “…não há ninguém mais sensível do que eu…irrito-me, desespero, com coisinhas de nenhum valor para os demais. Tenho a sensibilidade doentia… ando doente de pensar nisso, de ver-me assim exposto nú aos olhos de uma estranha.”
Esse estado de Lobato nos encaminha na direção de uma revelação, um nervo que salta do corpo e da alma, trazendo-nos o retrato nítido do que estruturava a psique do escritor, o seu mundo recoberto pela pele, apenas pela pele, e os gritos que se desgarravam das paredes do seu ser, transformados em letras, palavras, frases… tudo aconteceu assim… desse jeitinho…
Prof. Carlos Roberto Rodrigues