Search
quinta-feira 28 novembro 2024
  • :
  • :

Leitura de Taubaté – Lobato, o bêbado e o equilibrista

Em 04/11/1907 o escritor Monteiro Lobato mandou à sua noiva, junto à carta da maioria dos dias, duas sementinhas de uma deliciosa moranguinha. A moranguinha é minúscula, tem o tamanho de um maracujá, e, assando-a no braseiro, desbancaria a culinária francesa.

Ao mesmo tempo em que a sua preocupação primeira centraliza-se na moranguinha , tece comentários sobre o seu trabalho no júri da cidadezinha. O escritor estava trabalhando em dois processos sendo, um deles, terrível, crime com temperatura da violência que ocorre nos grandes centros urbanos. O pai, como todos os pais que habitam o mundo desde o princípio dos séculos, foi abalado pela perda da filha, fato que não acrescenta absolutamente nada ao caso; acontecimentos como este desembocam o dia inteiro no universo; a singularidade do ocorrido em Areias repousa na tragédia que envolve o desaparecimento da filha perante a vivência desse específico pai, os dois viviam juntos carnalmente. Esse tipo de enredo vem da Grécia antiga, mas não deixou de penetrar nos sertões da Mantiqueira.

No mês de novembro de 1907, Lobato confessou um drama pessoal que o invadira, nos mais variados momentos de sua correspondência com a noiva, uma espécie de agonia, de fertilização de um estado que o transportava a uma tristeza contundente, dilacerante, motivadas pelo amor atado a uma série de mal-entendidos.

Lobato, na tentativa de explicar a sua trajetória amorosa, recorre aos estudos da entomologia, citando o que ocorre a certos tipos de besouros quando, na época da explosão amorosa, machucam-se, torturam-se mutuamente de uma maneira bárbara e cruel. Colocando-se como objeto a ser estudado, pergunta à noiva se não teriam por pura casualidade genética, originados desses tais besouros.

O filósofo Shopenhauer escreveu, para tentar entender esses embates, esses conflitos, desencadeadores de terríveis sofrimentos, a famosa história dos porcos-espinhos.

Havia um grupo de porcos-espinhos. Existia o inverno tenebroso, congelado, branco como um ser qualquer, sem uma gota de sangue no corpo. Os animais espinhentos aconchegavam-se, aproximavam-se uns dos outros, porém, no princípio de um mínimo aquecimento, feriam-se doidamente. Presos entre o frio congelante e a dor dilacerante desgrudavam-se, dispersavam-se, procurando o isolamento indolor.

O frio aproveitando-se da postura solitária dos porcos espinhos, os atacavam usando de violência desmedida, até os pensamentos brotavam no formato de uma pedra de gelo.

O único meio disponível para evitar a morte, a única possibilidade, era juntar-se novamente, unir corpo com corpo.

Os seres humanos, na ótica do filósofo Shopenhauer, nasceram para tentar achar um complemento que alivie as tensões provocadas pelo amor. Nessa busca, sem perda de tempo, sem trégua, e enquanto não a encontram, o jeito é ir vivendo entre o envolvimento doloroso e o isolamento zerado de amor.

Na extensão de seus dias e suas noites, na pacata Areias, ao mesmo instante em que busca o equilíbrio de seus sentimentos, Lobato lê, devora páginas e páginas de literatura, filosofia, astronomia, religião, política; embriagando-se de narrativas, reflexões, lógica, cartas de viajantes, histórias das religiões, mitologia, e, como um bêbado sem comando, caminha pelas ruas da pequena cidade, dialogando consigo mesmo, com a noiva Purezinha, com as mil e quinhentas páginas lidas por dia, com a onça pintada, invasora das fazendas; dialoga com a boca da noite, com a indecisão das madrugadas, com os descaminhos donos de seus delírios, no entanto não se encontra, não se entende, não encontra as soluções do Outro, repudia as organizações sociais, e confrontando consigo mesmo e não tendo e não podendo conhecer o compositor João Bosco, abraça-se, sentindo no fundo do seu coração que ele é o bêbado e o equilibrista, cantado por Elis Regina.

Prof. Carlos Roberto Rodrigues