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sexta-feira 22 novembro 2024
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Leitura de Taubaté – Lobato na cidade de Areias

No mês de março de 1907, Monteiro Lobato estava instalado na cidade de Areias, na função de Promotor Público. Em carta à sua amada comenta o seu enfrentamento e adaptação aos novos ares. O calor era excessivo, brotava da própria sombra, a água provocou-lhe uma disenteria danada, a comida do hotel deu uma abalada em seu estômago, o exagero e paixão pelos cigarros incomodaram os seus pulmões; a saudade o fazia suar em bicas o que, de certa forma, prenunciava náuseas chatas e incômodas.

Olhando para cidade de Areias, olhos nos olhos, a imagem revela-nos a sua grandeza e, também, a pasmaceira dos dias atuais; a febre amarela varreu a vida de muita gente e a anemia dos cafezais derreou a fortuna dos tempos dos Viscondes e Barões.

Andando pelas ruas da cidade, somos apresentados aos casarões majestosos, grandiosos, de dois ou três andares, construções inexistentes em Taubaté. Em cada casarão há vestígios de histórias de amor desenfreadas, de crimes planejados, de risos abafados pela dor.

Vou falar-lhe um pouquinho do meu hoteleiro. É um tipo baixinho, magro, uma barbicha pendurada no queixo, com boné, nem sempre muito limpo, enfiado até as orelhas. Segundo ele, serviu como sargento na guerra do Paraguai.

Todas as noites, minha querida, enquanto tento morder uns bifes finos e duros, uns ovos estrelados, ouço-o, por longo tempo, narrar as batalhas da guerra, um verdadeiro porrete, cacete dos menos ajeitados.

Na cidade de Areias, minha cara, só há um chuveiro. Esse bendito chuveiro está instalado no antigo palácio que fora de um tal Capitão Leme. De manhã, antes do sol queimar a nossa pele, formamos uma fila na casa de um viúvo solitário, que habita o tal palácio dos Leme; há corre-corre, disputas, pequenos desentendimentos e no final, a felicidade do banho.

São nove horas da noite, aqui em Areias, minha doce Purezinha. O luar tonteia as ruas e os casarões da cidade, dá uma vontade danada de sair por ai, em algum lugar, declamando poesias de Bilac.

A igreja, pertinho da minha casa, sente que fora invadida pelo povo. A procissão do enterro, acompanhada de uma multidão, acaba de entrar no templo santo; o pobre do Cristo está novamente sendo enterrado. Há uns cantos anunciados pelas Madalenas desgrenhadas, banda de música fúnebre marchando monotonamente. O povo, não entendo bem o motivo, não enjoa de enterrar o pobre do Cristo todos os anos. O enterro não apresenta nenhuma mudança, fato que não justifica a repetição do mesmo.

No final da carta, ironicamente, Lobato faz uma revelação a sua noiva, revelação que, de certa forma, demonstra a existência de dois comportamentos lindamente conflitantes entre os que, genuinamente não pertence ao município de Areias e os habitantes da terra: “a nossa vida aqui é curiosa; temos duas caras; uma para os areanos, outra para nós mesmos. Para os areanos vivemos a gabar-lhes a cidade, o povo, a vida social; entre nós, quando ninguém nos houve, rompemos os diques do desabafo e damos para o diabo Areias, areanos e o mais”.

Boa noite, meu amor! Vou descer para comprar umas empadas da Dona Maria Lemes, as melhores que já comi nessa vida; na outra, não posso falar-lhe nada.

Prof. Carlos Roberto Rodrigues