Em carta escrita à noiva, a jovem Purezinha, moradora na cidade de São Paulo, em 1906, Lobato demonstra a sua preocupação com os detalhes que caracterizam a vida numa cidade do interior no início do século XX. Nada escapa a observação de escritor. Os costumes são detectados, a maneira de viver é apontada, o ritmo de urbanização e evolução social transformam-se em elementos concretamente observáveis, documentos vivos de um período, de uma geração.
A carta tem seu início, com o escritor comodamente sentado, no sofá da sala do casarão do Visconde de Tremembé, seu avô. A campainha dá um toque. O escritor levanta-se para atender a porta. Do lado de fora estava aquela menina linda, sorridente, simples. Viera para pedir emprestado do carro do Visconde para levá-la a igreja. Casar-se-ia, ao meio dia.
O Visconde, dono de fazenda, do poder, da política local, emprestava o seu carro para as noivas que estavam por casar, para os meninos que, na brevidade do tempo, comemorava o batismo do filho recém-nascido. Por meio do carro, símbolo da modernidade e da riqueza, o velho Visconde abria caminho até o povo sofrido e agoniado.
A faceta da cidade de Taubaté, o modo de viver o seu dia a dia, apresenta-se como um protótipo das demais cidades do interior, melhor dizendo, a capacidade de conhecer-se, todo mundo conhecia todo mundo. A menina que solicitara o empréstimo do carro era a mocinha mais bonita da cidade, filhinha do Batista madeireiro, homem bom e correto. O madeireiro, de manhã, de tarde e nas noites, morava na Rua Zé das Bichas, numa casa bem confortável, vizinha da casa das Lobato. O noivo era caladão, alto, frequentador do Clube da cidade; trabalhava como telegrafista da estação, cargo que exigia muito conhecimento e capacidade.
Após a mostragem de um pedacinho dos costumes locais, Lobato abre espaço para falar de amor; amor exigente, profundo, sedento, meio singularizado. Quer saber notícias da amada, direcionando os seus cuidados ao coraçãozinho da mulher escolhida. Usando a conduta comum, frequente na maior parte de sua correspondência amorosa, faz uma comparação entre o grau de paixão existente no coraçãozinho da amada e o seu; elevando, é claro, os seus sentimentos.
Meu amor, minha ternura, o seu coraçãozinho, no distanciamento imposto pela vida, sente saudades de mim? O meu coração quando apartado do seu chega a encostar-se no corpo de uma explosão, tem a vontade danada de explodir-se, evaporando-se. O uso do verbo apartar, transitivo direto e bitransitivo, coloca suas emoções envolvidas pelo distanciamento em situação de duplicidade semântica, ou seja, no sentido de afastamento e no sentido de separar, de intervir na luta agoniada pelo conflito, na separação dos antagonistas que lutam dentro da alma.
Em todas as suas cartas, Lobato demonstra a sua extrema preocupação em conhecer profundamente a mulher amada. Essa especificidade o leva a idealizar um possível mapeamento dos sentimentos mais enraizados na alma de sua noiva. Olha as mulheres e o mundo, examina os movimentos dos olhos, a sensibilidade revelada pela voz e gestos, chegando a uma teorização comportamental. Essa teoria o leva a dividir as mulheres em dois grupos: “Há mulheres que, quanto mais um homem a conhece, menos lhe cresce o amor; e outro, que são o contrário.” Esse amor-percepção determina o seu desejo de pertencimento, ter e ser de alguém, desejo que se consolida na realização e crescimento do amor, ponto de partida da completude amorosa.
Lobato, evidentemente, fixa a imagem de Purezinha no segundo grupo de mulheres, enquadramento em que se justifica pelo ato de confissão “Cada dia que desvendo um novo pedacinho de tua alma, mais se acende na minha o amor, o entusiasmo, a dedicação, a amizade que te consagro.”
O ato de desvendar, tirar a venda dos olhos, dá-lhe o domínio do conhecimento da alma de Purezinha, levando-o a um encontro com o símbolo do amor, o fogo camoniano, o arder, queimar, transformar, isto é, amor que se transforma. Por outro lado, a aproximação com Barthes e o seu “fragmento do discurso amoroso” é evidente, claro e profundo. Conhecer a percepção do amor, manifestado em todo ser humano, encaminha o discurso amoroso na rota do fracionamento da alma. Por ultimo, Lobato, romanticamente, declara o seu confrontamento amoroso, afirmando que trocaria a riqueza de Rockefeller e seu ranço petrolífero; a glorificação de Edmound Rostand e seu “Cyrano de Bergerac” em troca do amor de Purezinha.
Prof. Carlos Roberto Rodrigues