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segunda-feira 25 novembro 2024
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Leitura de Taubaté – Lobato e a coruja

Em carta escrita a noiva Purezinha em 13/07/1907, um sábado, Lobato tenta mostrar a mulher amada o psiquismo envolvente de Areias. Segundo o escritor, a coisa aconteceu na hora do jantar. Uma coruja sobrevoou a praça da matriz, pousando na cimalha da igreja. Para os que não conhecem a palavra e seu significado, cimalha é um tipo de moldura saliente de remate da parte superior de um edifício.

Pois bem, a pobre coruja pousara no remate religioso, balançando a cabeça de um lado ao outro. Se a pobrezinha estivesse na Grécia, seria associada á deusa Atena, nascida da cabeça de Zeus. Caso fosse um habitante da Idade Média a ligariam a bruxaria, feitiçaria e maus agouros. No entanto estamos em Areias, terra do Julinho, dono de uma carabina marca Flaubert. O moço, segurando a sua poderosa arma subiu as escadas em direção a uma das janelas do casarão. Apoiou-se nos batentes, fez mira, atirou onze vezes na pobre ave. A coruja, de posse de uma tranquilidade quase racional, não percebeu o que estava acontecendo.

A garotada tomou conta da calçada de olhos atentos à artilharia disparada pelo Julinho. Gritavam, pulavam, exclamavam-se com a boca, com gestos, sorrisos apressados. As moças namoradeiras, prometidas, desimpedidas ocuparam as sacadas das casas. Os olhares convergiam para coruja e aos rapazes sedentos e disponíveis.

A praça, pedaço de chão congestionado pela artilharia da carabina Flaubert, sentia-se muito valorizada. A cada tiro disparado, os aplausos tomavam conta do ar, dos olhares, das unhas oprimidas pelos dentes nervosos e ameaçadores.

Os tiros decoraram uma cantiga que falava de homens que se transformaram em heróis por aproximação, nunca conseguindo acertar o alvo.

Ninguém que caminhava pelas ruas ou acumulados nas praças preocupava-se com o tempo, com o galope do relógio, Areias concentrou-se nos tiros, na coruja, no atirador, na porcaria que era a carabina Flaubert. Lá pelas tantas, por ironia ou por um ajuste na pontaria, um dos tiros atingiu a ave de raspão; uma pena pulou do corpo da coruja e sobrevoou a praça.

O povo bateu palmas, gritou, exclamou frases que não se encaixavam na fala comum. Namorados apaixonados aproveitaram o momento e as mãos procuraram outras mãos.

A coruja, diante das horas ameaçadoras e da péssima pontaria resolveu levantar voo e deu vários snaps sobre o céu paralisado da cidade de Areias. O tiroteio, a pena da pobre coruja pilotando o ar, foram assuntos da tarde, da noite e do dia seguinte.

No final dessa carta, Lobato trata, além do quadro pintado com o psiquismo cultural de Areias, dos empecilhos causados pela imobilidade do município, uma espécie de objeto retardador de sua felicidade amorosa.

O caso da coruja, para o escritor retrata o aspecto delicioso da cidade. O sabor de Areias, mesmo comandado pela estagnação econômica não inutiliza a simplicidade da vida, a alegria do povo, a busca de um momento de catarse.
Na visão de Lobato, o prolongamento da data do seu casamento justificava-se devido a ausência de uma estrada de ferro, de um trenzinho caipira na cidade: “Tivesse ela estrada-de-ferro e seria aqui que iniciaríamos uma vida de casados – tanto é merecedora de ser conhecida e apreciada nas suas ingenuidades de cidadezinha antiga.”

Areias, uma cidade abandonada pela fuga dos cafezais, dos viscondes, dos barões, dos famosos coronéis; um município que se paralisa diante de uma corujinha atacada pela incompetência de uma espingarda Flaubert, mas mesmo neste estado, se possuísse um acanhado trenzinho resolveria o problema da paixão de Lobato; tornar-se-ia um éden rodeado de centenas de corujas.

Prof. Carlos Roberto Rodrigues