Search
quarta-feira 27 novembro 2024
  • :
  • :

Leitura de Taubaté – Lobato, criador de palavrões

Em carta de 1906, à Purezinha, Monteiro Lobato conseguiu medir a distância da permanência do amor. Segundo o autor, cento e cinquenta quilômetros de separação são uma boa prova para se testar a fidelidade amorosa. Ele, neto de fazendeiro e promotor substituto, morava em Taubaté; Purezinha, a mulher amada residia em São Paulo o que, em outras palavras significava que estavam separados por esses danados quilômetros. Nesse momento, usando o processo artístico que brilha no mundo da ficção, Lobato imagina uma casinha fixada num canto do cérebro onde mora a memória e, dentro desse mundo introspectivo pergunta a amada: “ Inda habito na casinha de tua memória? Que saudades, Purezinha, tenho!”

Ainda nesta mesma carta, Lobato comenta um caso de agressão física acontecido em Taubaté. Tudo aconteceu da seguinte maneira: Taubaté é apresentada no corpo da carta como uma cidade palerma, lenta, arrastada, quase sem vida e agitação. Nessa cidade havia um advogado muito bom chamado Affonso Moreira, homem de respeito e cultura. Pois bem, certo dia apareceu, em forma de folhetim criticando mentirosamente a conduta do advogado, um verdadeiro fake News jornalístico. Descobriram na passagem do tempo que o autor da infâmia fora um tal de Américo Mascate, um ser desprezível e sórdido. O jovem Joanito tomou as dores do Dr. Affonso e, na tarde de uma quinta-feira encontrou o Américo Mascate numa roda de amigos, na Praça Dom Epaminondas, se foi em outro local não façam conta, a memória histórica costuma falhar, algumas vezes. O sangue subiu para o rosto, o coração pisou no acelerador, a razão desprezou o corpo do Joanito saindo para tomar um café no bar Ideal. O jovem atirou-se sobre o Américo, a surra foi de arrancar o couro, o mascate não conseguiu parar em pé, as bofetadas espantaram todos os pombos, moradores da praça, desde o tempo dos Barões e Viscondes.

Em carta de 24/09/1906, escrita em Taubaté, Lobato lamenta a sua vida, a solidão que o abraça nos seus dias e noites. O universo Taubateano difere e muito da boemia paulista do tempo da faculdade de Direito. O seu dia, segundo suas confissões a amada, são de uma estupidez sem tamanho. Não consegue fazer nada, todas as coisas estão atrapalhadas, o desencontro entre o eu e o mundo está em todos os lugares, há um descaminho no princípio dos fatos e ações; há um clima no ar, no vento, que desanima os seres humanos, esse clima enlaçou o dia, por causa de um acontecimento dono de uma burrice descomunal, está acontecendo uma eleição na cidade, eleição com propostas parasitárias, insignificantes, sem jeito, desengonçadas.

À tarde, desse mesmo dia, encapotado até a cabeça, Lobato vai até o velódromo, assiste a um bate bola sem graça, sem craque, sem jogadas que mereçam respeito. O negócio, mesmo não querendo, está no retorno a casa, mas não se trata de uma casa comum, nas palavras do escritor, trata-se de uma casa com cheiro de deserto, de abandono, de silêncio arrastado, pregado às paredes, um verdadeiro horror!

Em meio a esse desespero o escritor navega, voa, tenta projetar no futuro o restauro dos seus dias presentes, imaginando o seu viver com Purezinha. Retoma o retorno à casa como ponto de partida à concretização do seus desejos: “ chegará o tempo em que voltar para casa será tornar pressuroso à tua cariciosa companhia, será vir a um encontro de um coraçãozinho amoroso e amigo donde o balsamo da ternura emane, consolador de todos os aborrecimentos e pirraças da vida!”

Voltando ao desespero de seus dias confessa estar doente, com febre, agulhadas na cabeça, um furúnculo na mão, muita dor, ínguas pelo braço. Na chegada da noite, porém, as esperanças de um sonho reconfortador deram de ser afastar de sua realidade. Tomou um banho bem quente, vestiu um pijama fofo, gostoso, ajeitou os travesseiros e iniciou a caminhada em busca do sono.

Um criado novo, contratado no dia anterior, dormindo no quarto vizinho ao do escritor, lançou no espaço o seu ronco homérico, desmontador de estruturas físicas. Lobato esmurrou a porta do quarto do criado, chutou, berrou, mas o ronco era poderoso, conseguia superar e anular qualquer outro som. Movido por um ódio singular, o escritor vestiu o terno, calçou os sapatos, ganhou a escuridão da rua, caminhando até o hotel do Peres onde tentou passar a noite. Os pernilongos não deram trégua, atacaram-no durante a passagem das horas. O relógio da Catedral de São Francisco das Chagas, bem no centro de Taubaté bateu seus sinos oito vezes, das onze às seis horas da manhã, o nosso contador de história infantil conseguiu, durante uma só madrugada, pronunciar aos berros todos os palavrões dicionarizados.

Pensando em vingar-se dos dramas do dia, Lobato encostou-se nos travesseiros e quase sentado pôs-se a pensar em Purezinha, o seu anjo encantado. Imaginou o casamento, a lua de mel, a casa pintada de lar, a filha brincando na sala, menina linda chamada Gracinha, branquinha como a mãe; Geraldo, o primogênito, brincando no quintal, amarrando os pés das galinhas poedeiras. Essa vingança está vestindo a roupa de um romantismo piegas, ilusório, enganador, mas completamente suavizado pela poesia da vida, da sua particular realidade.

Prof. Carlos Roberto Rodrigues