A fazenda situava-se num município próximo de Detroit. O plantio agradava a terra, o gado adorava o capim gorduroso, as árvores frutíferas demarcavam os limites e os alqueires de propriedade. Os tratores, as máquinas agrícolas rugiam durante a madrugada e as horas dos longos dias. O menino Ford, desde pequeno, adorava dialogar com os tratores, com as peças dos tratores; sentia muito prazer e curiosidade no engraxamento dos componentes da máquina, na troca de óleo; vibrava com o cheiro da fumaceira emanada pelo funcionamento das máquinas. O pai do menino, William Ford, sabia que o destino do filho não se ligava à agricultura, mas à mecânica. Aos 16 anos, o jovem Ford despediu-se das terras cultivadas, do cachorro perdigueiro, das galinhas, dos porcos, dos cavalos, tomando os caminhos que o levavam a Detroit.
No terceiro dia de perambulação pelas ruas da cidade, arrumou emprego na oficina mecânica chamada Cadente. Apoiado pela vontade, pelas horas de luta e de lutador, estudou engenharia. Logo após a formatura, nos dias de procura, de busca de emprego, arrumou trabalho numa grande empresa do ramo de elétrica. Nas horas vagas, planejava montar, detalhe por detalhe, um veículo movido à gasolina. Esse projeto invadia as suas horas, a sua vida com seus momentos, os sonhos desatinados nascidos na mente que habitava um corpo suado, cansado, agoniado, mas criador de um mundo desvairado, porém, possível.
Em 1903, ano marcado pelo desejo de prosperidade, Ford e mais onze investidores, criaram a Ford Motor Company, em Dearbom, nos EUA. O fato mais significativo do nascimento dessa fábrica centrava-se na proposta de produção, a elaboração de uma linha de montagem. Essa chamada linha de montagem designava vários operários perfilados, cada um fazendo um trabalho específico, mais ou menos como Carlitos, em “Tempos Modernos”.
Esse processo de trabalho popularizou a produção empresarial, permitindo a fabricação de um automóvel a cada noventa segundos. A linha de montagem tomou a forma de um fabuloso útero, gerando carros no passar dos segundos.
O Ford Modelo A, batizado numa pia repleta de gasolina, nasceu embalado pela simplicidade, transpirando confiança, respirando um custo baixíssimo, produzindo dentro do coração motorizado uma verdadeira revolução, a revolução da mobilidade, aventura, rapidez. Nessa época, época balofa em inúmeros aspectos, estamos nos referindo ao ano de 1908, os Estados Unidos possuíam 30% de estradas pavimentadas, concretadas, de acordo com as exigências do princípio do século XX. Os carros, Modelo A, espalharam-se pela América e mundo, revolucionando a maneira de viver, de estar no planeta água. Dirigir nas rodovias estendidas ao longo da realidade temporal era uma aventura, um combate pessoal entre o ser e a máquina; no entanto a adrenalina penetrava nos tanques de gasolina.
As paixões mudaram as rotas traçadas pelo espírito, fugiram dos parques, dos teatros, do sofá da sala paterna, para os bancos do Ford Modelo A. Assim, sorrateiramente ou reveladamente, a Ford conquistou o mundo dos homens tornando-se líder do mercado automobilístico, no impacto do momento ou na profecia embutida no futuro próximo.
O império gerado nas atividades da Ford vestiu a roupa da singularidade, da potência, da conquista, da liderança imbatível. Assim, pensando na ampliação de seus domínios, Ford chegou ao Brasil em 1919. A princípio, sem alarde, alugou um armazém abandonado na rua Florêncio de Abreu, em São Paulo. Atuando como um comerciante globalizado, vendia os modelos de carros fabricados em várias partes do mundo. Nesse armazém, a Ford montou um centro de exposição de carros importados e, ao mesmo tempo, um ambiente chique para os paulistas conversarem sobre automóveis, marcas, velocidade, cores, tecnologias avançadas.
Em 1920, ano marcado por decisões que, na essência, miravam o crescimento e investimento industrial no Brasil, o Presidente da República, Epitácio Pessoa, assina a documentação autorizando a produção de carros da Ford, no país.
Em 1927, a Ford adquiriu uma enormidade de terras situadas às margens do rio Tapajós, na Amazônia, pensando em criar um projeto agro industrial que solucionasse o fornecimento de látex, elemento base na fabricação de pneus para os seus carros. Para Ford, o Brasil era um país de terceiro mundo, não conhecia as técnicas de um projeto de plantio sustentado por uma metodologia científica; os salários eram baixos, o mercado de látex não recebera orientação e organização especializadas. Os trabalhadores moravam mal, não se alimentavam corretamente, o nível de escolaridade era inexistente.
Ford chegou a Amazônia trazendo técnicos, plantas de casas no padrão do primeiro mundo, quadra de tênis pré-projetada, máquinas, estudiosos, botânicos, engenheiro, sonhadores, poetas, bailarinos, professores de yoga.
O contrato da instalação do projeto, do desenvolvimento, direitos da multinacional eram, no mínimo, assunto para piadas mundanas embebidas em drogas alucinógenas. A Ford, assegurada por garantias estipuladas no pacote comercial, isentava-se do pagamento de qualquer taxa de exportação da borracha, das peles e do couro dos nossos animais, petróleo, sementes, madeiras, folhas.
O diagnóstico dos técnicos americanos sobre o nosso plantio das seringueiras estava incorreto, uma muda apoiava-se na sombra de outra muda, um absurdo! A funcionalidade administrativa em relação ao trabalho e funcionários, parecia uma nave desgovernada. Os americanos instalaram sirenes, bordaram crachás, implementaram os relógios de ponto, impuseram novas regras de comportamento.
Em 1930, aconteceu o que estava anunciado profeticamente pelas águas do Rio Tapajós; os seringais plantados pelos americanos estancaram o crescimento, minguaram, faleceram; houve por outro lado, revolta dos funcionários que não suportaram viver sob a agonia dos Hambúrgueres, os estômagos dos ribeirinhos pediram socorro; destruíram os refeitórios, as sirenes, os relógios de ponto. O exército precisou intervir, acalmou os operários que, àquela altura, tinham os bolsos recheados de dólares. Ford perdeu, foi derrotado pelos ribeirinhos do Amazonas, pelos seringueiros da grande floresta. A sua tecnologia não vingou no silêncio da grande Amazônia.
Em 1966, Ford inaugurou uma nova fábrica em Taubaté. Veio, gostou do lugar, adorou a cidade, movimentou os destinos de muita gente. Em 1999, para não perder o seu jeito de ser inaugurou a fábrica de motores Zetec Rocam, em Taubaté, gesto que indica, provavelmente, que gostara da cidade. Aqui em Taubaté ganhou milhares, bilhares de dólares com a produção Taubateana, cifras incalculáveis. Agora, nesse exato momento que o mundo sofreu e sofre um abalo pandêmico e o Brasil, pela sua dimensão, sofre dois abalos comprometedores, o pandêmico e o “politicodêmico”, a empresa coloca as roupas na mala e, simplesmente anuncia que deixará o município.
Não é um fato que gere lágrimas.
Não é um acontecimento que produza tristeza.
É uma ação que anula a dignidade da Ford, do homem, do mundo empresarial.
Prof. Carlos Roberto Rodrigues