Em 1907, mês de outubro, Lobato ainda está trabalhando em Areias. Nas horas de folga, que eram muitas, luta como um soldado batalhando em sua frente de combate, em busca da sua remoção para uma cidade melhor; cidade mais próxima de São Paulo, os seus olhos centralizavam-se nas colunas de jornais, revistas, telefones; chega a sonhar com uma promotoria em Caçapava, Piracicaba, Ribeirão Preto.
Na outra ponta da corda, um tipo de contramão ao seu destino, começa a repensar a permanência em Areias. O casamento, o amor, a paixão, trajada com roupas estampadas pelo desespero, levam-no a visitar alguns casarões desocupados, comodamente plantados no centro da antiga cidade exportadora de café.
Num texto muito interessante, comenta com a noiva, Purezinha, as belezas de uma casa magnífica, ampla, cômoda, mobiliada com móveis europeus, disponível, próxima a igreja matriz. O preço do aluguel, para o espanto do escritor, era coisa entre 20 ou 30 mil reis, valor economicamente baixo, considerando a arquitetura, o local, a preservação e, claro, as características estéticas.
Essa preocupação de Lobato em procurar uma boa casa de aluguel em Areias sustenta-se numa mudança de rota, de valores, de projetos idealizados. O escritor afirma, nesta carta, que mantem uma ideia em sua cabeça, ideia que martela os seus miolos dia e noite.
A sua mente trabalha com uma possibilidade norteadora e concreta, se no espaço de um mês ou dois não sair a tal remoção da promotoria pretende casar-se e morar por uns tempos em Areias. O problema imediato a ser resolvido equaciona-se na descoberta de uma fórmula que remodele a cidade histórica, enquadrando-a no universo crítico exposto por Lobato em cartas anteriores.
No momento em que escreve esta carta, outubro de 1907, o contista vê um único defeito em Areias (além da profética decadência que a embala) é a distância de quase duas léguas da estrada de ferro. O próprio Lobato, tentando convencer a noiva em relação ao seu projeto de vida, analisa o problema da distância, usando uma técnica nada racional, isto é, pratica um abrandamento do problema ao afirmar que não se trata de um mal tão grande quanto parece.
Antes que a noiva pense, reflita, levante os prós e os contras, Monteiro Lobato guina o barco para outra margem, mudando radicalmente de assunto. Aborda um tema, no mínimo fantástico ao afirmar que, além da promotoria pública, anda-se transformando em médico pouco a pouco, movido pelas necessidades dos outros. Lobato receita remédios homeopáticos, orientado pelo Almanaque da Saúde, aplica injeções hipodérmicas, consola os doentes desamparados.
Ao cair da tarde, após as atividades do Juri, trata do Quim, um menino que adoecera sem avisar a ninguém, simplesmente adoecera. À noitinha cuida de um rapaz mantido com injeção de mercúrio. No domingo durante o transcurso do passeio público, fora chamado para aplicar uma injeção de morfina numa menina com espasmos provocados pelo tétano.
Esses acontecimentos têm motivos, nascimento, certidão de batismo e causas, possuindo cara de nada, ou seja, carência e abandono político. Por falta de médico, fato comum no fundo do Vale na época o farmacêutico sempre preencheu essa ausência. No caso específico de Areias, o farmacêutico era uma fábrica de nervos, neuroses embutidas, espantos vindos da serra. Ao ver uma agulha, o pobre homem encolhia-se, tremia de pavor, entrava pelos labirintos da própria farmácia.
Ao terminar esta carta Lobato faz uma afirmação surpreendente: “o povo olha minha medicina com muito respeito.” Esse povo que respeita a medicina do Dr. Lobato, de certa maneira, compõe a imagem coletiva do Jeca Tatu, personagem que, lá pelos anos de 1914, sete anos após esses acontecimentos, surgiria no país.
Em carta de 28/10/1907, Purezinha analisa a situação proposta por Lobato, pensa em sua cidade, uma comunidade gigantesca abençoada por São Paulo, encara a garoa paulista, sente o cheiro da agitação e do progresso e pede ao noivo que espere pela remoção da promotoria.
O escritor, ao ler a resposta entra em pânico: “esperar! Como cansa! como desespera! E esperar no isolamento completo em que me acho. Não tenho com quem trocar uma confidencia. Tenho um amigo muito chegado… é uma requintada ignorância, incapaz duma ideia que não seja banalidade. Outro amigo, não me entra; tem exatamente o temperamento da Dona J. e é excessivamente caixeral! O único com quem me dava melhor, apesar de ser bobinho, abalou, não volta mais.”
A igreja da matriz resolveu agitar os seus sinos nove vezes. Lobato postou-se na janela do casarão onde morava. Silêncio percorrendo a cidade e as serras. O escritor fechou as janelas, sentou-se na cama, acendeu um cigarro, soprou a fumaça em direção ao teto… O sono, porém, morava no pé da montanha, lugar distante, berço de centenas de sacis. Lobato não dormiu, não sonhou, só fumou o seu tempo e a sua vida.
Prof. Carlos Roberto Rodrigues