O ano de 1989 distribuiu convites especiais, para um público especial, formado pela classe política do Brasil, convidando-o para assistir a uma peça trágica, dramática, extremamente cômica, abordando o seguinte enredo: primeira eleição presidencial, com voto direto, depois de três décadas de ditadura militar.
O povo desvairou e extrapolou todos os limites possíveis e imaginários; a população turbulou ideias embebidas em lubricidade eróticas, isto é, imaginou a urna como um ente sexualizado, colocada em espaço fechado, destinado a dois, o eleitor libertino e o corpo aberto para receber a cédula embebida por gritos de prazer.
Os partidos políticos ononizaram os corpos, a mente, as fantasias. Depois de tantos anos sobre o poder delirado dos militares, os partidos necessitavam testar o grau de popularidade eternizado na memória dos eleitores da nação. Houve correria, gritos, reuniões acaloradas, ofensas amenizadas; no calor das opiniões, muitas mães foram devidamente afrontadas. No entanto, filosoficamente, tudo o que principia tem um fim, e no desfecho desse abrasamento, os lideres partidários lançaram 22 candidatos ao cargo presidencial. Havia candidato afinado aos mais restritos gostos. O PN, um partido menor, lançou a primeira mulher candidata ao cargo de presidente, a deputada Lívia Maria Ledo Pio de Abreu.
No corre-corre, comum e rotineiro a todas as campanhas eleitorais, o processo afunilou-se; do fundo do coador saltaram três candidatos com reais condições de disputar a eleição, três homens, políticos, partidários e sintonizados com a preferencia dos eleitores. O fato surpreendente, porém, estava no engajamento ideológico dos 3 candidatos, ou seja, Luis Inácio Lula da Silva, líder sindicalista, vestia a roupa arlequinal da esquerda; Leonel Brizola usava a fantasia de chapeuzinho vermelho, devorando o lobo mal, e o jovem Collor representando o sonho dourado da direita; o jovem usava a fantasia coloridíssima do neoliberalismo nascido na dentadura dos oligarcas do nordeste.
Observando esse quadro com atenção, a Rede Globo de Televisão criou o programa “Palanque Eletrônico” com a finalidade de entrevistar os candidatos evocados pela opinião pública. A partir dessa programação, a Rede Globo encantou-se com o personagem Fernando Collor, candidato identificado pela emissora, com os galãs das novelas das 8.
O nosso eleitor caminhava pelas ruas do país, levando o arrebatamento no rosto, no gesto, na voz; há 30 anos não via tantos candidatos à sua disposição, existiam candidatos de todos os sabores, cheiros, ideologias, sapiências ou transbordando ignorâncias seculares.
A direita política, preocupada com o seu desiderato tentou, de ultima hora, lançar o empresário Silvio Santos para participar da contenda presidencial. Embora o pretenso concorrente tenha distribuído centenas de Carnes do Baú da Felicidade, aos juízes do Supremo Tribunal, sua candidatura foi abortada.
A programação televisiva, também denominada de Horário Gratuito Eleitoral, passou à apresentar, na telinha, um Collor bonitinho, boa aparência, voz façanhosa, discurso quimérico, lançando a imagem da modernidade, comprometido com Deus, caçador de marajás. O Lula, mesmo alavancado pelo esforço pessoal, transpirava, não apresentava intimidade com a câmera, discurso imprintado pelo sindicalismo, voz rouquenha e confusa. O candidato Brizola, forçando o sotaque gaúcho, berrava sonhos de reforma estruturais, planos econômicos, partindo da ideologia trabalhista.
O resultado das eleições passou a fazer parte da ansiedade nacional; as pesquisas de opinião pública passaram a dominar as conversas, as páginas dos jornais, das revistas, e os programas radiofônicos ou televisivos. No dia marcado para o término da apuração, os números sacudiram o país, houve discursões homéricas, denuncias de fraudes, porém, os órgãos apuradores apresentaram o seguinte resultado: Fernando Collor obteve 28% dos votos; Luiz Inácio Lula da Silva, 16,08%, e Leonel Brizola obteve 11,1%. A diferença entre Lula e Brizola foi de apenas 0,5%, fato inédito na vida política do Brasil.
As eleições de 1989 revelarem uma verdade incomoda a política do memento; mostraram a existência de um empate técnico nos quadros protagonizados pela esquerda; o que levou, pela primeira vez na história do país, a disputa presidencial para o segundo turno.
A eleição, em segundo turno, apresenta realidade própria, personificação dos modelos, das técnicas, dos projetos publicitários e propagandísticos. Nesta eleição entre Collor e Lula houve dois debates entre os concorrentes, organizados pelas redes Manchete e Bandeirantes de televisão. Os dois debates tiveram uma função primordial nos destinos da eleição de 1989, isto é, de certa maneira, traçaram o perfil político dos dois candidatos.
Lula foi desenhado como líder dos trabalhadores, defensor dos direitos do operariado, representante da força sindical, homem comum, originário da classe dos despossuídos, dos oprimidos, portanto, capaz de modificar o sistema econômico do país.
Collor foi esculpido como o caçador de marajás, demolidor dos corruptos, promotor da justiça social e econômica, compromissado com o desenvolvimento agrícola e industrial, representante da bela estampa dos trópicos, do atletismo, da saúde, da elegância refinada dos usineiros do lado de cima do Brasil. Nesse contexto, a Rede Globo de Televisão resolveu participar da construção, da elaboração da imagem do mito que, por meio de distorções planejadas da verdade, resolveria todos os problemas da nação vitimizada por 30 anos de obscuridade. A Globo manipulou a visão e a consciência de milhares de brasileiros, escureceu o cenário que seria usado por Lula, no decorrer dos debates e gravações, prolongou o tempo de televisão do candidato Fernando Collor.
Na outra ponta do processo, mesmo diante de um painel trágico como esse, Luiz Inácio Lula da Silva subia nas pesquisas; há 10 dias antes do término da campanha, o candidato da esquerda aproximava-se e muito, do menino prodígio da direita.
Houve uma noite muito escura nesse tempo eleitoral; dizem os astrônomos, que as estrelas encolheram-se no espaço e, em greve, recusaram-se a trabalhar, a oferecer luz ao universo humilhado, depressivo, angustiado. Numa casa amarela, em qualquer rua dessa nação, a equipe de Fernando Collor negociava com a enfermeira Miriam Cordeiro, ex-namorada de Lula e mãe de uma filha do candidato. Não sabemos exatamente quanto a enfermeira recebeu de Collor; o que sabemos, e dói em demasia; é que, no dia seguinte, a mídia falada e escrita detonou a notícia bombástica: “Lula me abandonou no início da minha gravidez. O Lula tentou, de qualquer maneira me convencer de fazer um aborto, isso aconteceu no ano de 1974.”
O depoimento foi usado no ultimo instante da campanha eleitoral, fazendo com que Fernando Collor conseguisse escalar a montanha em direção a rampa do Planalto, com uma votação de 53%. Mesmo com toda safadeza organizada pelos senhores de engenho, Lula obteve 46,97% dos votos, quase uma pequena vitória.
A eleição de 1989 deixou uma cicatriz no corpo do Brasil, por ocultação de alguns dados que poderiam, mesmo machucando a nossa memória, redirecionar a realidade da política atual.
O que foi ocultado do Brasil da época, não foi nada tão sério, mas poderiam ter notificado que o jovem Collor apresentava mil sintomas que caberiam no intimo de um diagnóstico de transtorno de bipolaridade, agressões a homens e mulheres, quebradeira em boates, hotéis, clubes; usava golpes de caratê em inúmeras ocorrências, fora prefeito biônico em Maceió; foi considerado prefeito mosca; mosca azul, elegante, brilhante, pois vivia voando pelo mundo na conta da prefeitura.
Na família Collor, Pedro Collor odiava Fernando; Leopoldo Collor não aceitava Fernando; Ana Luiza Collor rejeitava Fernando. Mas o Brasil, por um breve momento, acreditou, venerou, apaixonou-se por Collor. São histórias de amor repelentes e execradas, não sabemos o porquê.
Prof. Carlos Roberto Rodrigues