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sexta-feira 15 novembro 2024
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Leitura de Taubaté – Amor e Emulsão de Scott

Lendo as cartas de amor de Lobato à sua amada Purezinha, constatamos a existência de um mundo guiado pelo amor, paixão, desejo; mundo construído, projetado, fortificado pela sensibilidade emocional do escritor. Esse recanto encantado onde a realização conjugal poderia realizar-se, se confronta com o espaço real vivenciado pela humanidade em seu todo. Nesses mundos, urbano e rural, Lobato marca o seu encontro com a felicidade. A felicidade, porém, só será fato possível depois da união, do casamento, da vida realizada no interior de duas pessoas que se amam.
O casal, na imaginação do escritor, caminhará por uma estrada construída pelas mãos da alegria, da comoção, da realização amorosa. Lobato, buscando o isolamento, marca registrada da sua maneira de amar, confessa que andará ao lado da mulher amada à margem da estrada, pé ante pé, pelos caminhos estreitos, laterais, tomados pelo mato. O desejo íntimo do escritor demonstra a sua vontade de criar um mundo à parte, um pedaço de terra só do casal, onde a vida transcorra na calma, na felicidade, nas delícias mais discretas.
A partir desse caminho minguado, os dois apaixonados observarão e ouvirão o tropel suado da humanidade, humanidade que trota violentamente a estrada larga, no meio do pó, dos empurrões, dos encontrões. A separação realizada por Lobato afastando a sociedade urbana do seu modo de viver a dois, atinge o ápice na animalização dos outros, ao se referir aos “outros” como seres que trotam, que sonoramente não caminham, mas produzem tropéis.
O espaço destinado ao amor de Lobato por Purezinha, é silencioso, calmo, puro, habitado por jasmineiros intercalados de aguazinhas murmurosas, rodando no pedregulho, enfeitado por vivendas rusticas, pitorescas, céu cor de anil cobrindo o ar da manhã…
Oito anos depois, já casado com Purezinha e fazendeiro na Buquira, repinta o espaço edílico, idealizado para amar sua grande paixão, lugar marcado por jasmineiros, vivendas encantadas, riachos cantantes; repinta-o com tintas extraídas do ódio, da fúria, da raiva, da vingança. O lar, o espaço, o ambiente onde Lobato marcara encontro com o Jeca Tatu, já estava dentro daquele homem desmedidamente invadido pelo amor. Ao lermos Urupês batemos de frente com a imagem do caipira, o homem rural tipificado por Monteiro Lobato: “De noite, na choça de palha”…”Sua casa de sapé e lama”…”as plantações-cocos de tucum ou jiçara, guabirobas, bacuris, maracujás, jatais, pinhões”…”no meio da natureza brasílica só o Jeca não fala, não canta, não ri, não ama”.
O escritor Monteiro Lobato trouxe Purezinha para morar na fazenda Buquira. As estradas eram imensas, roteiros de cavalos, carros de boi, carroças, boiada e tropas de burro. O cafezal enfiara-se na terra, devorara o chão, montanhas, morros, riachos desavisados. Não havia tropel de gente, não havia humanidade troteando sobre as ruas asfaltadas, mas, por outro lado, havia o Jeca, a esquelética rocinha, a casinha de barro. Será que nesse mundo desgastado, destroçado, descrito em Urupês, Lobato amou, foi feliz, caminhou de braço dado com a esposa nas estradas da fazenda Buquira?
Retornando à sua carta de 1906, Lobato diz a sua querida noiva, que a felicidade perfeita não morava nas grandes cidades com suas ruas macadamizadas, ladeadas por fileira de magnólias, com anúncios de Emulsão de Scott de longe em longe, o ruído dos automóveis, as buzinas das bicicletas, pó, ar viciado e céu de neblinas.
A cabeça de Lobato, embebida em amor, vivendo o princípio do século XX sonhava com o universo rural descrito por José de Alencar, Bernardo Guimarães e outros, pelo menos romanticamente, fingidamente.
O autor de Urupês não queria viver e amar Purezinha na metrópole paulista. Recusava-se a caminhar sobre as ruas cobertas pelo macadame; desesperava-se diante do ruído dos automóveis e dos ruídos absurdos. Para lermos a correspondência amorosa de Lobato é preciso, em primeira instância, coloca-la como produto de um homem apaixonado, vivendo no interior, enquanto a mulher amada vivia na metrópole paulista. Esse fato consegue enquadrar o desespero do escritor e sua poeticidade em transformar o ambiente do Jeca Tatu em ninho de amor. Por outro lado, ao descrever a cidade grande como um espaço torturador, acerta em cheio ao plantar os anúncios do remédio Emulsão de Scott, nas avenidas metropolitanas. O Emulsão de Scott, remédio produzindo por John Smith, a partir do final do século XIX, uma mistura de óleo de fígado de bacalhau, vitaminas A e D, já foi o terror de todas as crianças do mundo e do Brasil. Todos se lembram da mãe, da colher, do líquido branco e pegajoso, enfiado garganta a baixo. Coisas da metrópole, do país, do terror infantilizado.

Prof. Carlos Roberto Rodrigues