O mundo de Areias assemelha-se a um pedaço de terra, em qualquer país do mundo, onde pouca coisa acontece, mas quando as ações mostram o rosto, nos surpreendem a cada instante. Em carta do ano de 1907, à sua noiva, Lobato comenta a chegada de um circo de escavalinhos na cidade. A chegada, a simples chegada tirou o município do seu eixo, da pasmaceira eternizada. A garotada brotada da terra, das ruas, das casas, dos sítios, tomou conta dos espaços possíveis e existentes na comunidade. As moças bonitas, feias, tímidas ou agitadas, reuniram-se em grupos e nesse ajuntamento falavam entre si, os sorrisos abafados com as mãos, a pele tendia a tonalidade avermelhada.
De repente, sem ruídos ou anúncios, saíram de uma tenda vários palhaços, contorcionistas, bailarinos, ciclistas, domadores de cavalos. As moças correram, gritaram, perderam o rumo revelando que a cidade tinha medo dos palhaços.
Em outra carta, do mesmo ano o escritor comenta o trabalho dos agenciadores de camaradas, de mão de obra para as novas fazendas de café. Eles entram na cidade, ajeitam-se nos bares, armazéns, padarias, farmácias, restaurantes e pensões. Conversam, penetram na vida de cada homem, sentem os dramas das pessoas, as dificuldades, as agonias.
Sem forçar cominhos, sem contornar estradas, oferecem empregos nas fazendas do oeste. A cada investida, retiram de Areias centenas de operários das terras em decadência ou em princípio de abandono. Assim, sem alarde ou defesa, Areias se encolhe, se desfalca, se despovoa.
Em carta de 17/11/1907, Lobato expõe à Purezinha, sua noiva, o seu projeto para o casamento. A união aconteceria no dia primeiro de janeiro; passariam um mês de férias em Taubaté e, depois desses acontecimentos partiriam à
Comarca do escritor que poderia estar em Areias, Araraquara, ou outra cidade qualquer, porém casados, ponto central do seu projeto, do seu sonho.
Entre sonhos e os passos da realidade, Lobato tece e costura hipóteses claras ou obscuras ao seu universo vivencial.
Em carta de 18/11/1907, tenta aproveitar os últimos momentos de noivado que percorrera o espaço de um ano. Esse aproveitamento significa, para o escritor, um aumento na produção de cartas. Após esse tempo bem lucrativo de correspondência, casar-se-iam e então tudo seria repleto de felicidade. Os beijos, longos e profundos, os abraços provocados pela paixão, aconteceriam na legalidade estabelecida pelo casamento. O casamento aparece como um passaporte que, em sua essência, permite o voo para a erotização da vida; uma autorização para contemplar e participar da sexualidade humana. A benção da igreja representa uma licença em busca do êxtase, da admiração momentânea, do pasmo preso à garganta. O poder estabelecido, por outro lado, realiza uma acomodação nos princípios da linguagem, abrindo novas dimensões significativas: “nossa casa”, “nosso lar”, “nossos filhos”, “meu marido”, “minha esposa”.
A correspondência amorosa entre Lobato e a noiva estabelece e dimensiona as ocorrências normais, as mudanças de curso, da data estabelecida para a realização do casamento, alterações que oprimem os sonhos, sufocam a realidade programada, abafam os movimentos do dia a dia e afastam a presença do futuro, jogando a concretização dos fatos para dias próximos ou distantes.
A saída do escritor mais uma vez encontra-se na literatura, na leitura e vivência de mundos afastados das alergias cotidianas. Assim, na mansidão de Areias, na elasticidade do tempo pensado para a sua união à mulher amada, Lobato lê Homero, penetra no universo narrativo da Odisséia, anda pelas ruas de Helade, encosta numa das pilastras do templo, conversa com Ulisses, Penélope e Mentor, bebendo gotas de um mundo repleto de ações, certezas, dúvidas, fantasias, deuses e desencantos. Dessa forma a literatura afasta o escritor de suas realidades próximas ou distantes, e como disse o próprio Lobato, afastando-o das ideias suicidas, fazendo com que a vida retornasse ao seu eixo.
Prof. Carlos Roberto Rodrigues