A tarde entrava pelos vãos da janela do pequeno ateliê. A fumaça do cigarro circulava em torno das pranchetas que, inconscientes, prendiam folhas de papel entupidas de desenhos, riscos, recortes, ideias em ebulição. Mary Quant, inglesa de nascimento, sentia um aperto no peito, um cheiro apodrecido tomava conta do mundo, correndo pelos salões do palácio da rainha; percorria os guarda-roupas reais e os milhares de vestidos pendurados ao vento, exalando uma mistura de perfume, suor e ranço de uma monarquia que ainda teimava em permanecer no poder, sem ter poder algum. Um poder de boneca, casinha, príncipes e carruagens.
O olfato da estilista Mary Quant sentia a paralisia da moda feminina; a opressão em forma de tecidos, aprisionando os corpos. Suas mãos tremeram no cabo da tesoura; a saia estendida sobre uma pequena mesa, gritava dentro dos seus próprios impulsos, e a tesoura avançou cortando, cortando e, neste gesto sexual de cortar, retirou metade de um todo secular; a minissaia nasceu diante dos olhos de Mary, olhos embutidos de liberdade, beleza, juventude, exposição. Um pedaço de pano xadrez caiu no chão, o Big-Ben urrou um sonido de espanto e os anos sessenta pularam para o meio da rua. A República da Língua Grande, sentada em sua sala de honra, um dos bancos da Praça D. Epaminondas, viu as primeiras minissaias passarem diante da matriz, com destino ao Cine Palas. E os olhos aprovaram a nova moda e o cheiro de uma revolução.
Os acontecimentos paridos nas lousas das universidades do mundo, nos palcos dos teatros, nas telas dos cinemas, nos livros, nas páginas de revistas, questionavam o real valor das gerações que pisaram nas ruas deste planeta, em décadas anteriores, criando duas guerras mundiais, a bomba atômica, o perfil sangrento da violência e de novíssimas injustiças sociais. Ao lado da minissaia, do psicodelismo, o teatro de rua, realizado em lugares públicos, convidava a juventude a questionar todos os atos e ações daqueles que viviam com o dedo no gatilho da morte individual e coletiva. A música dos Beatles e dos Rolling Stones entravam por baixo da pele de todos os corpos, fazendo os poros explodirem de rancor contra os políticos, o poder, o lago contaminado, estagnado, estragado. Os novos tempos acompanhavam o vento.
Os novos tempos chegando
A juventude da década de 60 caminhou pela estrada da mudança dos costumes, da revolução nascida no interior de cada um, na reforma do cotidiano, das roupas, do comportamento, dos gestos ousados, dos cabelos compridos, da leitura das ideias de Marcuse . A República da Língua Grande de Taubaté, homens sábios, aderiram à onda jovem, que vinha dos Estados Unidos e Europa. Deixaram crescer os cabelos, trocaram as roupas representativas de um mundo vencido e, juntos, do banco da praça Dom Epaminondas, acompanharam o desenvolvimento do mundo zengakuren do Japão; ouviram as vozes de 200 mil jovens vaiando Eisenhower em sua visita ao país japonês; perceberam a luz acesa nas altas madrugadas, no dormitório do psicólogo Timothy Leary, onde aconteciam as experiências com drogas na Universidade de Harvard. Os homens da República da Praça D. Epaminondas imaginaram o famoso psicólogo de cócoras, como Macunaíma, num canto do quarto, vendo um elefante vermelho, saindo do buraco do botão de sua camisa. Leram, atenciosamente, o primeiro número da revista Cláudia, trazendo a proposta da igualdade social, cultural, sexual da mulher brasileira. A revista postou-se numa encruzilhada da mentalidade tupiniquim, organizando um despacho; acendeu uma vela para destruir tabus, preconceitos de superioridade, ergueu as mãos e a voz contra a pasmaceira obscurantista do lar; colocaram um frango recheado com artigos, reportagens profundas e fantásticas, análise de filmes, resenhas de livros, lançamentos de produtos de beleza, receitas culinárias adaptadas, novidades do teatro. Nos cinco charutos espalhados pelo chão da encruzilhada, Cláudia inovou a linguagem; remodelou a imagem da nova mulher, uma mulher real, guerreira sem idealizações; a mulher sonhada, imaginária, meteu os pés no chão, iniciando a caminhada em direção às indústrias e universidades.
A política do povo
Com a publicação da revista Cláudia, jogamos o Brasil na década de 60. Na política, no início desse tempo, o marechal Lott lançou-se candidato à presidência do país. O seu discurso centrava-se no nacionalismo. Uma economia nacionalista, um afastamento dos manipuladores estrangeiros, uma cultura com a cara do Brasil. Ademar de Barros, caminhando no meio do povo, prometia aumentar o salário, o direito de morar em sua casa própria, comprar suas roupas nas mesma lojas que os ricos compravam, e ter direito a restaurantes, zona, e uma sacanagem de vez em quando. Jânio Quadros usava banda de música, cartazes, faixas, chuva de papel picado e farinha de mandioca nas costas, imitando caspas. A sua vassoura, símbolo da campanha, não era de bruxa, mas o objeto que varria a sujeira do Brasil, colocando-a debaixo do tapete. Ele, aos olhos do povo, representava um lutador usando luvas de economista, ao propor o confronto do “tostão contra o milhão”. Jânio cheirava povo, o unificador dos militares, da classe média e a da pobreza, em torno de sua santa imagem. Obteve 5.636.623 votos, numa vitória esmagadora jamais vista no país.
A República da Língua Grande, acompanhante dos movimentos políticos e das ondas do mar, foi profética: “o homem não inspira confiança; ele tem uma expressão de quem está esperando a torneira do alambique abrir, para encher o copo. Não aguenta seis meses”. A renúncia de Jânio, a maior decepção do país na década de 60, não abalou a República da Língua Grande de Taubaté. O único fato, psicologicamente sério, ocorrido pós a renúncia do vassourinha, se deu com seis membros da República. Eles foram numa feijoada na casa do Waldomiro Carvalho. Comeram, beberam, dormiram no sofá e sonharam o mesmo sonho: “Havia um palco. Sobre o palco, com roupas minúsculas, dançavam quatro generais. Dançavam e cantavam o hino de uma tal revolução, tendo a seguinte letra: fomos à praia nos bronzear, nos queimamos, escurecemos, mamães bronquearam. Nada de sol. Hoje só queremos a luz do luar. Tomamos banho de lua, ficamos brancos como a neve. Se o luar é nosso amigo, censurar-nos ninguém se atreve. Criamos, ao sonharmos contigo, o luar tão cândido: Dops, Pau de Arara, Cacetada, Choque, Assassinato, Ocultação de cadáveres”.
E os nossos anos 60 desfilaram sobre tanques, guerrilha, combates ideológicos, fechamento de universidades… silêncio!
Por Prof. Carlos Roberto Rodrigues