Era o dia 23 de julho de 1948. Lobato estava deitado, recuperando-se de um espasmo cerebral. O sol ainda não nascera. A lua, meio atrasada, ainda estava no céu; os padeiros e os leiteiros, usando o pregão diário, colocavam o leite e pão nos parapeitos das janelas.
Acordado, depois de uma longa noite de insônia, Lobato apanhou uma folha de papel e um lápis e deu de rascunhar uma carta a Godofredo Rangel, prenunciando ser a ultima carta que mandava ao amigo.
A carta mostrava uma grande vitória do escritor, isto é, sua chegada aos 66 anos de idade. A sua doença, ocorrida semanas antes, Lobato a entendeu como um aviso, um anuncio de que a morte estava a espreita, vivendo em todos os cantos de seu apartamento. Lobato tinha a certeza que estava perto do fim, a morte anunciara-lhe a necessidade de se preparar para grande viagem.
Essa concepção de que a morte era uma viagem, nasceu dos estudos de Lobato sobre o espiritismo. Nessa carta a Godofredo Rangel, Lobato mostra ao amigo que aceitara a teoria propagada pelo espiritismo da época, “a aceitação da sobrevivência do espírito”, aceitando também que era possível entrar em contato com o mundo pós-morte.
Embora demonstrasse dúvida, Lobato começara a aceitar, em consequência de suas pesquisas, que morrer é apenas “ passar do estado vivo para o estado de não vivo”. Na verdade a morte é um pulo químico no espaço, esse pulo apresentava características da possibilidade e da realidade.
O autor confessa ao amigo que está movido por uma curiosidade evolutiva, ou seja, desejo de mergulhar de cabeça no além; verificar com seus próprios olhos se, no mundo desse além, o espírito não mais tossirá, terá isenção da pigarreira, e não mais precisará fazer as necessidades fisiológicas, em outras palavras, ser totalmente livre.
O artista, agindo como um pesquisador, leva em conta outra possibilidade, de nada disso ser verdadeiro. O negócio a fazer então, é a penetração na existência do não ser, isto é, bater de cara, no além, com o nada.
Na madrugada de sua morte, os boêmios cantavam pelas ruas músicas muito confusas; as prostitutas, cansadas, voltavam do trabalho; os políticos tentavam superfaturar obras destinadas à melhoria da vida, como sempre nas madrugadas. Às 4 horas os telefones começaram a cruzar o espaço aéreo transmitindo a mensagem: – Lobato acaba de morrer. Em seu apartamento, os amigos foram chegando. Os móveis da sala estavam fora do lugar, o forte cheiro de remédio ainda estava no ar; Dona Purezinha, esposa do escritor chorava lágrimas vindas da alma; Arthur Neves, que fundara a editora Brasiliense, juntamente com Lobato e Caio Prado Júnior, consolava os familiares.
Depois chegaram Edgar Cavalheiro e um médico muito jovem, que viera em substituição do Dr. Neiva. Brecheiret, o artista que introduziu a escultura no nosso modernismo, chegou com sua mala portátil. Cumprimentou a todos. Após esse momento de tristeza, entraram no quarto do escritor. Lobato, estendido em seu leito, parecia estar dormindo. O rosto transmitia serenidade, os cabelos penteados, o sono parecia tomar conta do seu corpo. Brecheiret aproximou-se, passou-lhe a mão na testa e derrubou algumas lágrimas sobre o peito. Em seguida desembrulhou um pacote de gesso, dissolveu-o, e iniciou o processo de feitura da máscara mortuária.
O Dr., após o trabalho de Brecheiret, aproximou-se do corpo, aplicando-lhe uma série de injeções, com a finalidade de preservação do corpo por 48 horas. Em plena luz do sol paulista, Lobato viajou do seu apartamento para o salão da Biblioteca Nacional, onde foi velado.
O trânsito, nas proximidades da biblioteca congestionou-se.
As crianças vieram despedir-se.
Lágrimas.
Saudades antecipadas.
Um vazio que jamais será preenchido.
Prof. Carlos Roberto Rodrigues