Entre as diversas provações que temos na vida, estão as pessoas que vivem a fantasia de serem de alta estirpe, filhos de fidalgos ou descendentes dos proprietários das Capitanias Hereditárias. Encontrar com a corte em nosso cotidiano não é evento raro. A aristocracia concede a todos nós a oportunidade de estarem presentes em momentos muito especiais.
Bastou ter um cargo importante, ser filho de alguma autoridade, pertencer a família de renome ecoante, possuir alguma renda proporcionada por herança, benefício ilícito ou dinheiro não frutificado na labuta do cotidiano, que a aprovação do Monte Olimpo irá conferir a coroa de louros dourados da divina presença.
Caso tenha então algum parente influente, daqueles que quebra o galho, abafa o caso e proporciona o atestado de impunidade por pertencer a algum clã de renome, isso já irá conferir uns 5 centímetros a mais no salto imaginário para poder olhar mais de cima os reles mortais.
Frases comuns como: “ Você tem ideia de com quem está falando?” ou “ Você não sabe com quem está se metendo!” podem muito bem expressar a frase mais rasteira : “ Você tá ferrado!”
Pessoas com este olhar de cima da torre, podem estacionar o carro onde acharem que devem, furar fila, falar em voz alta o que pensam dentro de sua fantasia neurótica e dentro de uma sensação de superioridade, serem esnobes.
E lá estava eu tomando o meu café na padaria. Sabe aquele cafezinho com pão e manteiga? Conquistei alguns amigos, a manhã começa com um papo agradável, sinto-me mais desperto e vou para o trabalho. Mas tem dias que não acordamos com as bênçãos do alto e aquele café até que ajuda a espantar o Boitatá matinal e tudo bem!
Gosto de tomar café no balcão, sou neto de padeiro, minha infância passa pelo salão da padaria e o cheiro do pão fresquinho é um bálsamo! Na lateral direita do dito balcão uma Lady Grace falava aos borbotões enquanto um outra tomava seu café com ares de quem praticava a paciência na divina arte de saber ouvir.
Como se estivesse narrando uma corrida de cavalos, devido a velocidade com a qual as palavras debulhavam de sua boca, aquele texto parecia decorado, repetido diversas vezes para um processo de autoconvencimento. O fato é que em poucos minutos eu já estava sabendo que ela era de Taubaté, estava morando em uma outra cidade dita por ela “mais avançada”, com padarias abertas 24 horas, que separou do marido quando sua criança tinha 3 anos de idade, foi pai e mãe ao mesmo tempo, que malhava pesado (embora seu corpo atual tenha se esquecido de comprovar as mensalidade na academia) e por aí vai.
Não pense o leitor que eu estava com o ouvido espichado na direção da realeza. Não, nada disso. Acredito que mesmo estando do outro lado da calçada, a vizinha sentada confortavelmente em seu sofá poderia estar acompanhando todos os detalhes.
Então começou a comparação. Lembrando a novela Tieta, as reclamações sobre o nosso “ estado atrasado” de “uma cidade que não cresceu em nada” ainda não havia me causado revolta. Nem dava. Eu ainda estava na primeira metade do meu pão e não iria embora. Então vieram as pérolas. “Terra de gente com pensamento pequeno e atrasado”. “Gente desprovida de inteligência”, “ Imagine você, eu passo mais de 10 anos fora, e quando retorno, não tem mais de 10 prédios novos construídos!”
Foi então que eu reparei melhor em Lady Grace. Maquiada, cabelos necessitando de retoque, pois as raízes declaravam nitidamente que tentava ser uma vênus platinada e a tatuagem exibia o objeto radical das atividades físicas intensas pois “ caminhadinha é coisa de gente frouxa.”
No desenvolvimento do besteirol, a amiga percebeu que eu não estava aprovando os comentários e sinalizou para a distinta. Ganhei imediatamente uma olhada torpedo, ela virou-se e continuou o desmazelo. Por consideração ao ambiente, me levantei, paguei e fui embora. Certamente Lady Grace era do tipo que poderia descer a ladeira e revelar a barraqueira que mora em seu ser.
Com o carro distante uns cem metros, me lembrei de Bete Faria em Tieta. Batizei o ser apoteótico de Lady Grace Benedita, o nome de uma cachorra de uma grande amiga que justificava: “coloquei Benedita do final do nome para ela aprender a ser mais humilde!” Que assim seja!
Por Cláudio Mariotto – Terapeuta
24/02/2018