Até 1808, os brasileiros comiam com as mãos e viviam numa terra sem universidades, imprensa ou médicos. Com a chegada da corte ao Rio de Janeiro, a colônia começou a ficar com cara de país
Naquela manhã quente, seu Barroso levantou cedinho. Próspero comerciante carioca, ele tinha de ir até o Valongo, na zona portuária, examinar mercadorias recém-chegadas. Mandou um escravo enrolar as esteiras onde havia dormido, enquanto outro colocava uma tábua em cima de dois cavaletes e trazia as gamelas com o almoço. Entre um bocejo e outro, Barroso mergulhava os dedos na papa de farinha e feijão preto. Terminou de comer limpou as mãos na roupa de algodão e, antes de ir para a rua, deu uma chinelada na ratazana que tentava invadir sua casa.
O comerciante precisou aplicar um golpe de bengala para atravessar a esquina – um bando de urubus estava distraído demais para lhe dar passagem, banqueteando-se com um cachorro morto na véspera. Numa rua estreita, Barroso passou por seu barbeiro, o mulato Sebastião, e se deteve um instante. Suas hemorróidas estavam de matar. Seria o caso de pedir ao velho homem uma rápida aplicação de sanguessugas? Talvez uma outra hora. Mais alguns minutos e Barroso finalmente chegou ao Valongo, onde trocou uma bela quantidade de carne-seca e couro curtido por alguns negros trazidos da África.
Embora a cena descrita acima seja fictícia, ela traça um retrato fiel do que era o Brasil no começo do século 19. O pedaço mais lucrativo do império português também era um local tosco, desprovido de saneamento básico, educação superior, hospitais e até de moeda circulante (nosso Barroso não era um adepto do escambo à toa). A fuga do príncipe regente dom João e de todo o aparato estatal português para cá, entre o fim de 1807 e o começo de 1808, deu os primeiros passos para acabar com esse marasmo (o que colocaria a colônia, sem querer, no caminho da independência). E tudo graças a Napoleão Bonaparte, que tinha decidido acabar com o sossego de Portugal e ocupar o pequeno país ibérico.
Deus nos acuda
Portugal tinha virado alvo de Napoleão por causa da sólida aliança do país com a Inglaterra. Enquanto expandia seus domínios pela Europa, o imperador da França enfrentava uma guerra prolongada com os britânicos e queria expulsá-los dos portos da Europa. Como Portugal era um dos poucos países ainda abertos à Marinha inglesa, Napoleão pressionava dom João a abandonar seus velhos aliados.
O indeciso príncipe regente adotou por meses sua tática favorita: enrolar. Mas a pressão britânica foi mais forte que a francesa, em especial porque a Inglaterra ameaçava ocupar o Brasil caso o monarca não concordasse com o plano de fugir para a colônia. Quando dom João finalmente aprovou a retirada estratégica, a situação logo virou um deus nos acuda. Os cerca de 40 navios carregavam um amontoado de cerca de 11500 pessoas. A frota, escoltada pelos britânicos, deixou Lisboa em 29 de novembro de 1807, quando o Exército francês já estava entrando na capital.
A comitiva aportou em Salvador em 22 de janeiro de 1808. Antes de rumar para o Rio de Janeiro, dom João ficou pouco mais de um mês na Bahia. Foi apenas o tempo estritamente necessário para se recuperar da travessia e emitir a famosa ordem de abertura dos portos brasileiros às “nações amigas” – leia-se Inglaterra –, acabando com o monopólio naval português por aqui. Era a primeira prestação devida aos britânicos por seu papel de cães de guarda do império lusitano. E a primeira mudança de peso a afetar uma colônia que estava, sob muitos aspectos, parada no tempo.
Tigres e bandoleiros
Os que estudam a situação brasileira em 1808 são quase unânimes: chamar a América portuguesa de “Brasil” seria quase força de expressão. A unidade estava longe de ser clara. “Os habitantes do Brasil se auto-identificavam como portugueses, sentimento que convivia com identidades particularistas, como ‘ser das minas’ ou ‘ser bahiense’”, diz Ana Rosa Cloclet da Silva, doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Estima-se que o Brasil da época tivesse 3 milhões de habitantes – incluindo 1 milhão de escravos e 800 mil índios.
Cerca de 60 mil pessoas viviam no Rio de Janeiro, contra 46 mil em Salvador e 20 mil em São Paulo. Embora os paulistas já tivessem parado de falar tupi – que, durante séculos, chegou a ser mais usado que o português em São Paulo –, eles ainda tinham muito de índio, dormindo em redes, vestindo imensos ponchos e usando, para cortar a carne no almoço, a mesma faca que manejavam em duelos.
Os paulistas com jeitão de bandoleiros eram só uma faceta da vida urbana caótica que dom João encontraria no Brasil. As ruas das principais cidades só poderiam ser definidas como uma zorra total. Estreitas e mal iluminadas, eram lotadas de vendedores ambulantes cuja gritaria não deixava ninguém em paz, bichos (principalmente porcos e galinhas) e lixo. Sem falar nos urubus, que se esbaldavam com tanta fartura.
No entanto, em termos de, digamos, saneamento básico, nada superava o sistema dos “tigres”, os escravos que desempenhavam o papel de carregadores de esgoto e lixo em cidades como o Rio, Recife e Salvador. Eles colocavam barris cheios de dejetos nas costas e os levavam para o mar. Com o passar do tempo, as substâncias que caíam em seus ombros deixavam listras brancas na pele negra – daí o apelido felino. As praias mais glamurosas do Rio moderno provavelmente eram um fedor completo no começo do século 19.
Os “tigres” eram só mais um lembrete de que, no dia 8 de março, dom João e sua corte tinham desembarcado no maior mercado de escravos das Américas, o Rio de Janeiro, cidade onde um terço da população correspondia aos cativos.
No olho da rua
O primeiro problema que o príncipe precisou resolver na chegada foi onde enfiar 11500 membros sem-teto da elite portuguesa. Simples: dom João mandava pintar as iniciais P.R. (oficialmente “Príncipe Regente”, mas interpretadas como “Ponha-se na rua”) nas casas desejadas para sua nobre trupe. Os donos originais tinham que deixá-las livres para os novos moradores e, supostamente, deveriam ter sido recompensados com uma espécie de aluguel, mas isso acabou acontecendo com frequência bem inferior à necessária.
Dom João trouxe para o centro do Rio um novo tipo de música: a dos explosivos, pondo abaixo morros e rochedos que, segundo os urbanistas portugueses, atrapalhavam a circulação do ar e das águas e tornavam a cidade propensa a enchentes. Na base da pólvora, a região foi ficando mais plana e ampla. Era preciso expandir a cidade: em 1808, o Rio tinha apenas 46 ruas e um punhado de becos e travessas. Segundo cálculos do viajante inglês John Luccock, cada residência carioca espremia, em média, 15 pessoas.
Apesar do “Ponha-se na rua”, a elite carioca se mostrou mais que disposta a sustentar a corte nem um pouco austera de dom João. O maior exemplo disso veio com a fundação do Banco do Brasil, que iniciou um lucrativo sistema de toma lá dá cá entre o rei e seus súditos brasileiros. O banco seria sustentado inicialmente pelos investimentos dos cariocas, que podiam comprar ações da instituição. Quem fosse generoso podia ser recompensado com títulos de nobreza e, melhor ainda, com dividendos bem superiores ao rendimento real do banco. Isso porque, como disse o jornalista Laurentino Gomes em seu livro 1808, o Banco do Brasil se pôs a emitir papel moeda sem lastro correspondente em ouro – receita ideal para que a instituição quebrasse, o que aconteceu anos após a Independência.
A colônia não tinha autonomia completa nem para julgar seus próprios crimes. “Antes de 1808, o Judiciário do Brasil era composto essencialmente pelos Tribunais da Relação, com sedes no Rio de Janeiro, na Bahia e no Maranhão, mas a última instância ficava em Lisboa”, conta Márcio Antônio Ribeiro, então consultor histórico do projeto Bicentenário do Judiciário Independente no Brasil, organizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Uma das medidas tomadas pelo príncipe regente foi criar a Casa de Suplicação no Rio, transformando a nova capital na última instância de todos os casos julgados em seus domínios.
Quase medieval
A verdade é que criar um banco e um tribunal ou abrir os portos era até a parte fácil do trabalho de dom João. Difícil mesmo seria cumprir o objetivo declarado de tornar o país “digno” da corte recém-chegada. O primeiro baque deve ter sido a diferença brutal de vestuário entre os fugitivos e os nativos. De um lado estavam as perucas empoadas, os sapatos de salto alto e os casacões bordados que Portugal copiara da corte francesa. De outro, os chinelos de dedo, calças leves e jaquetas de chita dos homens do Rio de Janeiro. Já as cariocas usavam rosários, camisas simples, saias curtas e mais chinelos.
Não demorou para que os brasileiros se pusessem a imitar o estilo da corte – até escravos libertos adotaram cartolas, bengalas e casacas. Mas estava na cara que esse tipo de vestuário não funcionaria direito num país tropical. Um diplomata da Prússia relatou o desastre de uma recepção de gala: “Às 8 horas, ombros e costas das damas, que trajavam vestidos decotados da moda, já tinham sido tão picados por mosquitos que, de tão vermelhos, assemelhavam-se a soldados após apanharem de chicote”.
Em vários aspectos do cotidiano, até mesmo os brasileiros mais ricos levavam uma vida quase medieval em 1808 (com a exceção do costume de tomar banhos regulares, impensável para os portugueses). Quem vivia por aqui em geral não sabia o que era usar talheres à mesa. Enquanto os homens utilizavam facas de cabo prateado para cortar carne – num almoço formal, cada convidado tinha de trazer a sua de casa –, mulheres e crianças mergulhavam as mãos na papa de comida.
O menu não era muito variado, incluindo em geral carne-seca, toucinho, feijão preto, farinha de milho e, para beber, água. Vez por outra, as famílias comiam à mesa, embora o mais comum fosse fazer as refeições no chão, sentados em esteiras, com o prato no colo, enquanto as ratazanas passavam correndo pelo aposento – se você queria saber se duas pessoas sentadas lado a lado eram íntimas, era só prestar atenção se uma delas enfiava a mão no prato da outra e pegava um pedaço do rango.
Cultura de fachada
As boas maneiras precárias na hora do jantar eram apenas sintomas da completa falta de refinamento no Brasil pré-1808. Sem nenhuma faculdade por aqui, qualquer estudante mais ambicioso precisava ir para uma instituição europeia, como Coimbra, em Portugal (que formou 527 brasileiros entre 1772 e 1800). O ensino mais básico dependia das ordens religiosas, de seminários ou, bem mais raramente, de professores leigos isolados nas cidades e vilas, pagos pela coroa. Dom João deu os primeiros passos para mudar isso já em 1808, ao fundar uma escola de Medicina em Salvador e outra no Rio de Janeiro.
Essa revolução no ensino foi também o começo do fim da única vantagem da medicina brasileira: a praticidade. Quem queria resolver problemas de saúde podia aproveitar para fazer barba, cabelo e bigode. Isso porque, sem médicos formados, quem ocupava seu lugar eram os barbeiros. Munidos de instrumentos como serrotes e de remédios como óleos e cascas de árvore, cabia a eles desafiar as moléstias comuns na colônia, como sarna, bicho de pé, verminose, hemorroida e hepatite. Os tratamentos, rudimentares, quase sempre incluíam a sangria: eram feitos cortes na pele do paciente para que o sangue escorresse por algum tempo, na esperança de que a doença “saísse” desse jeito. Com o mesmo objetivo, era comum o uso de sanguessugas para chupar fluidos corporais.
Somava-se à falta de educação formal o controle rígido da circulação de obras escritas estrangeiras e a proibição de imprimir jornais, revistas ou livros por aqui. O primeiro jornal dedicado à comunidade brasileira, o Correio Braziliense, começou a ser impresso… em Londres, pelo jornalista gaúcho Hipólito José da Costa, em 1808. Nasceu timidamente independente, até que dom João resolveu oferecer a Costa uma pensão governamental que manteve o jornalista fiel ao domínio português até a Independência. A essa altura, o príncipe já tinha fundado seu próprio jornal oficial, a Gazeta do Rio de Janeiro. Também mandou trazer para cá os livros da Biblioteca Real, que tinham ficado para trás no cais de Lisboa e seriam o embrião da Biblioteca Nacional.
Dom João se esforçou para dar ao Brasil pelo menos uma fachada de vida cultural. Apaixonado por música sacra, o soberano importou até um grupo de castrati, eunucos italianos famosos por sua habilidade como cantores líricos. O Rio ganhou o Teatro São João, com espaço para mil espectadores e 112 camarotes. O problema era a falta de modos do público: não era raro que os artistas levassem pedradas bem no meio das apresentações.
Outra importação artística famosa foi a da Missão Francesa, composta por pintores, escultores e músicos e trazida em 1816 (após a derrota de Napoleão) com o propósito de criar uma academia de Belas Artes por aqui. Esse objetivo não foi cumprido. Em compensação, os franceses souberam puxar habilmente o saco da família real, organizando eventos suntuosos para comemorar o casamento de dom Pedro ou a coroação de dom João VI após a morte de sua mãe. Os franceses usavam madeira e tapumes para criar réplicas meia boca de pirâmides, obeliscos e templos gregos, tudo generosamente decorado com flores tropicais, folhas de palmeira e lampiões coloridos.
Rebaixamento jamais
Durante anos, a presença de dom João serviu para unir a elite da colônia em torno do projeto de reconstruir o poderio português. “Verificou-se, de fato, um surto de patriotismo imperial”, escreve o historiador Luiz Carlos Villalta, no livro 1789-1808 – O Império Luso-Brasileiro e os Brasis.
A corte fez de tudo para transformar o Rio num palco adequado para seu esplendor. O comércio prosperava e os cariocas nunca tinham se sentido tão europeus. Produtos industriais ingleses inundaram o mercado brasileiro – até patins de gelo vieram parar aqui, logo virando maçanetas improvisadas, entre outras aplicações insuspeitas. Cabeleireiros franceses, cozinheiros italianos e até os primeiros imigrantes não-portugueses – um grupo de suíços que fundou a cidade fluminense de Nova Friburgo – trouxeram um sabor internacional aos domínios de dom João.
Havia, no entanto, um senão nesse idílio tropical: ele se chamava Portugal. O país foi reconquistado com a ajuda de tropas britânicas, mas acabou devastado pela guerra e arruinado pela perda da posição de metrópole. Some-se a isso o fortalecimento das ideias liberais no país, e o quadro estava montado para exigências sobre a criação de um governo constitucional, que limitasse os poderes de dom João VI e o chamasse de volta para Lisboa. Foi o que reivindicou a Revolução do Porto, em 1820.
No ano seguinte, após mais um de seus típicos episódios de enrolação, dom João VI embarcou a contragosto para seu país natal. Logo ficou claro que as intenções dos revolucionários portugueses incluíam um retorno do Brasil à velha situação subordinada. No entanto, quase tudo tinha mudado desde 1808. A colônia agora tinha um centro claro, o Rio de Janeiro, que não aceitaria facilmente o rebaixamento de cidade imperial a cafundó colonial. E os habitantes daqui – governados pelo príncipe Pedro, de cabeça quente e inclinações liberais –, estavam começando a pegar gosto pela ideia de ter seu próprio país.
AH