Embaixada
Cunha sempre foi marcada pelas suas tradições, mas essa marca às vezes assusta a gente, porque deixa seu espaço de produção se reproduzindo em outro lugar, ou mesmo em outros lugares. Ao mesmo tempo em que assusta, se renova diante de novos espaços. Desterritorializados pela necessidade do emprego, eles ainda se juntam na fé, na amizade e no parentesco para rezar e mostrar a capacidade e o talento que cada um tem com a música e com as canções que simbolizam essa ligação com lugar de origem. Muito embora essas canções tenham se originado nas canções de Rolando, durante a Alta Idade Média, no reinado de Carlos Magno, a expansão do cristianismo em direção ao Oriente com o acontecimento das Cruzadas e, mais tarde com o descobrimento e colonização da América pelos europeus e a propagação da fé católica pelos descobridores trouxeram esse tipo de manifestação que sobrevive através da transmissão oral entre os membros das comunidades rurais mais isoladas do Vale do Paraíba e, também do interior do Brasil. Estudiosos de antropologia previram durante as décadas de 1950 e 1960 que esses grupos deixariam de existir devido à migração da população rural para os médios e grandes centros urbanos. Embora essa desterritorialização tenha isolado alguns grupos e componentes importantes da comunidade foram afastados, mas aos poucos ela vem se refazendo desse impacto inicial, colocando as questões de parentesco a prova se religando novamente, com isso alguns membros mais velhos desses grupos acabam fazendo essa transição como o caso de José Tereza, residente no bairro das Três Pontes.
Seu Zé Tereza como é carinhosamente tratado por todos no bairro onde mora e pela vizinhança, depois de anos isolado, conseguiu unir um grupo de parentes e amigos que trouxeram seus filhos e sobrinhos, formando um novo grupo de Moçambique, mas não é apenas mais um dos que costumam apresentar-se nas festas de bairros do município. O que tem marcado as apresentações do grupo é a encenação da Embaixada que, quando vai terminando a festa, começa a preparação, deixando o público extasiado com aquele apito indicando mais uma apresentação de seus companheiros. Como um verdadeiro mestre, Zé Tereza reúne todos e começa a desembainhar duas espadas, uma com fita vermelha e outra com fita azul no cabo. É hora de começar a luta? Não, é apenas um preparo para o espetáculo que vem a seguir. O grupo muda a formação dividindo os tocadores por um lado, e de outro os que vão simular as batalhas. Nesse momento, Zé Tereza começa a narrar as batalhas entre mouros, muçulmanos e outros povos pagãos que procuravam invadir a Europa Medieval, que vai se defender em nome do cristianismo. De acordo com o diálogo, os bastões e as espadas dos moçambiqueiros vão simulando as armas e os combates acontecidos durante o reinado de Carlos Magno. Todas as negociações e as ameaças são narradas com uma riqueza de detalhes impressionante, mas quando alguém esquece parte da fala, lá está Zé Tereza ajudando – os em todos os momentos, recolocando parte do diálogo e, assim dando continuidade ao espetáculo que, entre música e fala, dura mais ou menos uma hora e meia.
Durante a apresentação, o público se coloca em um silêncio quase absoluto, todo mundo se ajeita num espaço quase minúsculo, entre microfones para gravação por parte de pesquisadores sobre musicalidade da região e dos fotógrafos e câmeras que procuram registrar o acontecimento, sem perder nenhum lance criado a cada novo gesto dos apresentadores comandados por “seu” Zé Tereza. Perguntei para algumas pessoas da região se havia gostado do espetáculo e a descrição é de que beleza e simplicidade se complementam, formando uma série de novos ritmos capazes de se construir uma nova ordem dentro da vivência cotidiana dessas pessoas.
NO RITMO DA VIOLA E DA SANFONA
O dia-a-dia dos componentes do grupo de Moçambique, comandado por Zé Tereza, é ditado pelo trabalho agitado que herdaram dos pais, no caso dos mais jovens, no trabalho na fábrica de papel de Aparecida, onde reside boa parte dos componentes do grupo. A outra parte está dividida no município de Cunha, que tem uma vasta área rural (1410 quilômetros quadrados). Quando vai ter “dança” como eles estão acostumados a chamar suas apresentações, Zé Tereza levanta cedinho e começa a preparar tudo: coloca em um saco as duas espadas herdadas dos seus antepassados, o bastão de guatambu, a paia são também colocados com muito cuidado em uma bolsa de lona amarela. Tudo está pronto, de uniforme branco com fitas azul ou vermelha e o boné. Eles vão “dançar” em alguma festa da região ou pagar alguma Promessa feita para São Benedito, em busca de alguma graça alcançada por algum amigo ou parente, mas às vezes eles rumam para outros municípios da “redondeza”( expressão bastante utilizada entre eles).
A alegria da chegada do grupo é marcada por cumprimentos calorosos, pois todos são amigos e parentes, ou seja, são da Irmandade de São Benedito.Antes das orações para o santo e dos pedidos de graças e os agradecimentos, eles sentam em dupla ou pequenos grupos de 3, 4 ou 5 pessoas e começam a cantar modas de viola, catira, cateretê e outros ritmos regionais, afinal é dia de festa e, em dia de festa tudo é prova de alegria e louvor ao Santo. Muitos, apesar de já trabalharem ou ter já aposentado do trabalho na indústria, não se esqueceram do tempo em que trabalhavam na roça e, muito menos dos mutirões que são lembrados nos desafios musicais. Eles cantam calango, desafio e canto de mutirão, que também é uma espécie de desafio que acontece durante o trabalho na roça, principalmente quando todos os homens do lugar vão ajudar algum amigo ou parente necessitado desse serviço e que não tem dinheiro para pagar pela realização dessa tarefa. As mulheres participam ajudando na cozinha. Não há tristeza, é muita alegria e descontração, é muita conversa com muitos causos de assombração, de bicho “brabo” (animal difícil de adestrar). Há alguns anos que o agora juiz do trabalho João Batista, que também é do lugar, tem realizado, no final do mês de junho de cada ano, uma festa valorizando o pessoal do bairro e também mostrando para seus convidados a cultura deles e também dando a chance de poderem apresentar-se no espaço de origem, revitalizando ainda mais a identidade de todos com o lugar comum produzido pelos seus próprios ancestrais. A apresentação da Embaixada é uma marca comum no final da festa, mas o que vai marcar tanta satisfação é a fé que leva essa gente a contar o tempo apressadamente para quando será a próxima, para que possam se encontrar novamente. Isso é festa, é folclore, é alegria, é cultura popular, é a identidade de um povo e de um lugar que faz a alma da gente transbordar de felicidade. Essa é a lama cabocla, tem o sertão no coração, além de viver aquela vidinha que só Deus sabe o quanto é sofrida, mas tudo é motivo para a felicidade e a alegria. É uma vida vivida com emoção e com bastante sinceridade, porque a amizade jamais permitirá que o outro pereça por falta de solidariedade.
Às vezes a imaginação humana leva a gente a pensar no que seria uma verdadeira cidadania para esse povo, para quem os benefícios do Estado para o exercício da mesma, quase nunca chega até eles, mas uma coisa é certa: aquilo que a cidadania não dá, esse povo conquista pela amizade e pela vontade de lutar, criando novos caminhos, sendo apenas um porque ser dois é ser nenhum, ninguém.