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quinta-feira 26 dezembro 2024
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Fé e Razão – Os rostos do silêncio: silêncio interior e crescimento espiritual transformador

O silêncio jaz, como os textos arqui-orais, à espera que o acorde o ressuscite alguma pessoa ou quem o lê.
Aparentemente, o silêncio não é um ato comunicativo: espera a sua vez, a sua fala, enquanto memória figurativa do corpo e superfície de inscrição de emoções ( suspense, luto, reprovação, anuência, júbilo).

Se me volto para alguém, se o interpelo, e esse alguém não se voltar para mim, não me responder, o seu silêncio tem em mim um efeito passional, intrigante, interpretável como recusa, desprezo, abandono.

O silêncio , na interação social é ausência de fala. O silêncio nesta área pode ser dividido em três categorias: mental, social, ou ambas, sendo definidas segundo tempo, o contexto e a percepção. Há quem fale do silêncio surdo, isto é o silêncio que não é sonoro mas gestual, próprio dos surdo para quem fazer silêncio – ou calar-se – no mundo visual que é o seu, se mostra quando deixa se mexer as mãos como outros deixariam de abrir a boca (onde encontramos o corpo enunciante). De acordo com as normas culturais, o silêncio pode ser interpretado como positivo ou negativo, por defeito ou por excesso. O silêncio completo é quando não se sente o mínimo ruído.

Fisiologicamente, o silêncio é o resultado de hesitação, autocorreção, ou de deliberada interrupção da fala com o fim de clarificação ou de processamento de ideias. Há silêncio curtos e silêncios longos, em intenção e em extensão. O silêncio interativo manifesta-se nas funções interativas, reativas, ou de dar lugar à fala do outro. Mas há o silêncio incapacidade de responder, recusa esvaimento da linguagem diante do inefável.

O monge e escritor trapista Thomas Merton ( 1915-1968) falava de vida religiosa como vida silenciosa, O que a vida religiosa exige é que se deixe instalar o silêncio para que Deus fale, que se entre no silêncio de si para aí ouvir a Palavra . Quando amamos alguém, procuramos sua presença: basta então que aquele(a) que procuramos esteja lá, mesmo que nenhuma palavra se troque: essa é a verdade do silêncio interior. Nesse silêncio escuta-se o que vive em nós, a palavra, O silêncio da presença faz apelo a um presente radicalmente outro.

Uma mente silenciosa, liberta do ruído do pensamento é uma finalidade e um importante passo no desenvolvimento espiritual. Esse silêncio não é ausência de som; pelo contrário, é entendido como o pátio que permite o contato com o divino, a realidade última, ou a verdade de cada um.

Muitas tradições religiosas implicam a importância de estar quieto e mesmo no pensamento e no espírito em vista ao crescimento espiritual transformador. No Cristianismo existe o silêncio da oração contemplativa, ou de meditação cristã; no Islamismo, há a sabedoria dos escritos dos Sufis que insistem na importância de encontrar o silêncio dentro de si. No Budismo, o silêncio permite que a mente se torne silenciosa em função da iluminação espiritual. No Hinduísmo, incluindo os ensinamentos do Advaita Vedanta e os passos do yoga, os mestres insistem na importância do silêncio para o crescimento interior.

A medicação que isola a alma da azáfama (grande pressa) das atividades terrestres precisa do silêncio como a sua antecâmara, como condição da sua potenciação. O primeiro gesto do silêncio é a expulsão do mundo e do ruído, conforme está escrito: “O Senhor não está no ruído” (1 Rs 19,11). A casa é o dentro.

É no meio do silêncio, no momento em que todas as coisas mergulham no maior silêncio, em que o verdadeiro silêncio reina, que se ouve o Verbo, porque se queres que Deus fale, é preciso calares-te> para que ele entre, todas as coisas devem sair.

O silêncio é uma estratégia de comunicação, um fazer, como se vê no relato da mulher que se ajoelha aos pés de Jesus e lhe unge os pés. O corpo fala, o silêncio é um gesto significante, afetivo. Há silêncios prenhes: Jonas, no ventre da baleia, é símbolo de Cristo silencioso no seio da sua mãe e, ao mesmo tempo, a figura reduzida ao silêncio e que depois renasce, falando.

Jesus não fala, quando se ajoelha diante dos discípulos para lhes lavar os pés. O seu ato vale pela palavra: o seu ato faz corpo com a sua palavra ou a sua palavra faz corpo com o seu ato. O seu ato é palavra. Acolher o dom do amor do Outro passa pelo silêncio da escuta.

A evidência do divino vivo, tal um oceano de luz, é a doçura e dá-se não ao raciocínio, mas ao coração e à sensação: o “tudo sentir em Deus” de Isaac ,o Sírio (Séc. VII d.C.) torna-se o culto da “sensação de Deus” que recusa as palavras.

 

Prof. José Pereira da Silva