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sábado 30 novembro 2024
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Fé e Razão – Oportunidade de nos reencontrarmos e reaprender coisas essenciais

A pandemia de covid-19 apanhou as nossas sociedades despreparadas. E não apenas ou sobretudo do ponto de vista sanitário; penso do ponto de vista da nossa experiência, e daquilo que a nossa memória pode extrair em nosso socorro. Falo da nossa visão do mundo e da existência, do que julgamos distante ou longínquo e do que está efetivamente perto; do que temos por estritamente individual e do que é coletivo; do que consideramos que nos protege e do que nos expõe; do que temos, ou tínhamos, por adquirido ou como completamente improvável; da consciência da nossa real força e da nossa vulnerabilidade.

Não é fácil, repentinamente, constatar que sabemos de nós próprios e da vida muito menos do que pensávamos. Não é fácil despertar dentro de um mundo desconhecido, como o pobre caixeiro-viajante naquela novela do escritor Franz Kafka (1883-1924).

Pode parecer paradoxal, este tempo presente, este tempo de crise, com as dificuldades que todos conhecemos, representa também uma oportunidade para nos reencontrarmos.

A experiência de confinamento, por exemplo, tem-nos ajudado a compreender talvez melhor o que significa ser, e ser de uma forma autêntica, radical, uma comunidade. Hoje, porventura, percebemos melhor que a nossa vida não depende apenas de nós e das nossas escolhas. Todos estamos nas mãos uns dos outros.

Todos experimentamos como é vital esta interdependência, esta trama feita de reconhecimento e de dom, de respeito e solidariedade, de autonomia, de serviço e de relação.

Todos esperam uns dos outros, e estimulam-se positivamente a que faça a sua parte. Ninguém se salva sozinho. Estamos todos no mesmo barco. Todos contam.

Os cuidados individuais que somos chamados a exercitar não são a expressão de uma fobia ou apenas do interesse próprio, como se destinados a nos enclausurar na torre de marfim do nosso ego.

São sim a forma de colaborar para uma construção maior, de colocar os outros no centro, de sacrificar-se por eles, de privilegiar nesta hora o bem comum.

É a hora em que podemos reaprender tantas coisas. Podemos, por exemplo, reaprender a estar nas nossas casas, nas nossas famílias, mas também a sentir que depende de nós o nosso prédio, o nosso bairro, a nossa cidade, a nossa região, o nosso país, dando substância efetiva a palavras tantas vezes esvaziadas dela, como proximidade, vizinhança, humanidade, povo e cidadania.

Podemos, por exemplo, reaprender a utilizar as redes sociais não só como forma de divertimento e evasão, mas como canais de presença, de solicitude e de escuta. Sem nos tocarmos, podemos reaprender o valor da presença, da saudação, o estímulo do cumprimento, a incrível força que recebemos de um simples sorriso ou de um olhar.

Sem nos conhecermos, poderemos finalmente reaprender a não legar ninguém à indiferença ou tratar os nossos semelhantes como desconhecidos. Nenhum ser humano nos é desconhecido, pois sabemos por nós próprios o que é um ser humano, o que é esse pulsar de medo e de desejo, essa mistura de escassez e prodigalidade, esse mapa que cruza o pó da terra com o pó das estrelas.

Quantas coisas somos chamados a reaprender nestes dias. Mas a vida também é isso: transformação, despojamento, viragem, mudança, que depois pode também estar na origem do nosso reflorescimento. A vida também é este apelo que nos pode chegar através das formas mais exigentes e dolorosas, para que a escutemos melhor, e a escutemos até o fim como provavelmente não o havíamos feito ainda. Porque a vida é o seu parto interminável, que é também o nosso. E é este incessante modelar do inacabado que a nossa gestação, a par da gestação do mundo, significam.

Ao que parece três coisas foram descobertas:
a) A primeira expressa pelos cientistas, que nos recordam que o número das epidemias cresceu e crescerá, porque os nossos modelos de desenvolvimento não tem em conta o equilíbrio dos ecossistemas nem o respeito pela casa comum. Temos atuado no mundo como se estivéssemos sozinhos no planeta, e esquecemo-nos que partilhamos com as outras criaturas, ambientes, potencialidades, e também uma palavra urgente para o século XXI aprofundar, conexão.
b) Em segundo lugar, os nossos estilos de vida no contexto deste mundo globalizado precisam de conversão. Construímos sociedades movidas pelo dogma do utilitarismo, que operam sobretudo como mercados massificados e exibem um desinvestimento dramático no humano. A corrida que nos impomos é produzir mais para consumir mais, e com isto desaprendemos o essencial da vida.

Não podemos esquecer aquilo que Albert Camus (1913-1960) escreveu no seu romance A peste: “o bacilo da peste pode chagar e ir embora sem que o coração do homem se modifique. E esse seria o verdadeiro desperdício, se nem uma pandemia nos ajudasse a mudar a nossa visão, o nosso coração”.

Esta pandemia ajuda-nos a compreender que precisamos de uma nova sabedoria, de modelos mais integrativos, com visões capazes de dialogar com inteireza da pessoa humana nas suas diversas dimensões.

E por isso precisamos todos de nos unir e fortalecer para desenvolver apostas de confiança na vida, neste dom incalculável que a vida significa.

Prof. José Pereira da Silva