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segunda-feira 23 dezembro 2024
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Fé e Razão – O silêncio e a interioridade na construção da pessoa e da sociedade

Cada ser humano transporta uma interioridade,porém às vezes essa interioridade fica abandonada, esquecida, relegada para um segundo plano. A exterioridade acaba tomando todo o espaço.

Quando o ser humano deixa a sua interioridade, quando não a integra e desenvolve, a vida perde a sua coesão e desagrega. Porque se não damos espaço para o crescimento interior, para que cada pessoa possa escutar até o fim a pergunta que traz, o enigma que é vivermos sobre a Terra, se cada um de nós não escutar o lugar onde vive, o lugar onde fala, se não se der condições para praticar uma hospitalidade genuína em relação ao real, há um empobrecimento muito grande da vida. É uma questão séria de como as nossas sociedades são chamadas a organizar-se.

Para tudo isso existe algo fundamental: o silêncio. O silêncio é indispensável. É uma condição da nossa existência. Sem o silêncio, as realidades sobrepõem-se então damos espaço a uma audição efetiva da realidade, seja a externa, seja a nossa interior.

O silêncio costura-nos. É uma espécie de linha que atravessa todas as coisas da nossa vida, mesmo quando não nos apercebemos dele. Podemos comprar o silêncio àquilo que é o espaço entre as palavras num texto. Se as palavras não tivessem um espaço, não se leriam. Sem o silêncio, a nossa vida não se lê. É apenas um atropelar de vivências, de situações, mas nunca damos espaço a uma digestão, que é necessária para poder haver encontro,para poder haver revelação, para poder haver conhecimento.

Uma experiência que todos já fizemos, ou fazemos, é a de que o silêncio é difícil. Ou temos medo desse encontro mais profundo conosco próprios, com as perguntas, as dores, o desejo, as coisas resolvidas ou não do nosso coração, e há medo desse silêncio.

O que acontece dentro de cada um, acontece também na vida comum. Um certo atordoamento que hoje se vive na nossas cidades, por exemplo, ou em tantas situações sociais, é exatamente porque, se nos calarmos, o que é que ouvimos? Há a tentação de fugir à voz mais profunda que nos chega da vida. Mas se não formos capazes de ouvir a vida como ela é, a verdade, a espantosa verdade das coisas, como dizia Fernando Pessoa(1888-1935) , nunca celebraremos o verdadeiro encontro conosco próprios, e não podemos adiar continuamente a nossa vida. Por isso , o silêncio é um parceiro na construção das pessoas, na construção da vida social. Existe um desejo coletivo, que é vivermos não apenas pela rama, mas sermos capazes de colher em profundidade a vida.

Um poema de um poeta japonês, Matsuo Bashô (1644-1694), um haikai, em que ele diz: silêncio uma rã mergulha dentro de si. E este mergulho para o interior de nós é absolutamente indispensável, Sem isso, nós não somos.
Para um poeta, a sua vocação primária é o silêncio, porque a poesia obriga a esse ato de escuta, de hospitalidade. O silêncio que experimentamos nesta pandemia foi uma espécie de silêncio purificador. Temos de fazer deste momento um momento de proferição de uma palavra, e de uma palavra com uma qualidade humana que reflita o melhor do nosso silêncio.

Penso que este tempo de pandemia tem de ser um tempo de envolvimento de todos. A palavra pandemia, pan – demos, em grego quer dizer, todo o povo; é uma coisa que diz respeito a toda a gente. Então, precisamos de nos sentir todos envolvidos, protagonistas deste momento da história, em que vamos precisar de muitas forças para manter a coesão, ou para reinventar uma coesão social, política, econômica, afetiva, cultural, espiritual, que possa dar-nos o sentido de uma comunidade que não deixa ninguém para trás.

É uma palavra que vem deste silêncio que experimentamos com dor, com incômodo, mas que agora nos tem de motivar a repensar e projetar com confiança este difícil presente que estamos a viver.

Tudo é silêncio. E quando olhamos para a vida numa determinada dimensão, percebemos o silêncio mesmo numa pessoa que grita; porque há uma parte dela que grita, e há, talvez, a maior parte dela que permanece em silêncio. E se formos capazes fixar o silêncio, vamos perceber que o silêncio está em toda a parte.

A palavra não interrompe o silêncio, que a apalavra verdadeira é aquela capaz de prolongar e iluminar o nosso silêncio. O silêncio dá-nos uma grande capacidade de abraçar a vida, de a escutar até ao fim, de a viver apaixonadamente, que é a coisa mais importante. A idéia não é fazermos tudo para proteger a vida, isolando-a; não, a vida é para ser vivida, para ser dada, para encontrar um sentido, que esta mistura de sangue e de sonho que é a nossa vida possa ser lugar de uma combustão, de uma plenitude; a vida é apara ser gasta.

O poema de Carlos Alberto Serra de Oliveira (1921-1981) diz: “ cantar é empurrar o tempo ao encontro das cidades futuras fique embora mais breve a nossa vida”. A vida é breve , este é um caminho, mas temos de sentir que nesta brevidade, neste acender de fósforo, vivemos inteiramente, integralmente, aquilo que a vida é chamada a ser. O sentido está todo aí.

O silêncio é um constante resgate do essencial. Dante Alighieri dizia que o amor move o sol e os outros astros. O amor é essa sede do outro, sede do infinito, sede de sentido, sede de felicidade, que mora , irremediavelmente, no coração insólito de um ser humano.

Prof. José Pereira da Silva