Quando consultamos um dicionário, verificamos que o termo cuidar tem como primeira parte o étimo latino “cuid” que pertence ao verbo cogito que remete para a grande área semântica, isto é, de sentido, que resolve em torno de verbos como pensar, considerar, meditar, refletir, cuidar. Em português tem um sentido lato que implica um sentido de cuidado, de manutenção, de tratamento, de preparação, de desvelo.
Cuidar tem uma dimensão antropológica, ética e política, manifesta a dimensão relacional: cuida-se sempre em relação. O cuidado é um ato político e apenas como político pode existir. O cuidado existe sempre e só como relação de um qualquer sujeito ético – humano – como algo que o transcende. Não há cultura sem uma forma qualquer de cuidado. O cuidado implica um ato de compromisso. Não há cuidados parcelares, não se cuida de meio ser humano, de meia natureza. Pelo cuidado , o ser humano constrói a polis.
Todo o cuidado nasce ou, de todo, não existe no seio ético de cada ser humano, como exercício daquilo a que chamamos vontade.
Há um ponto fundamental nesta relação de cuidado: se dois ou mais seres humanos estabelecem este compromisso mútuo de cuidado, imediatamente se instala um ato de recíproco de amor, forma mais elevada do amor humano, em que cada um dá ao outro o bem sob a forma de cuidado de que o outro necessita. Para Aristóteles, esta forma de recíproco amor constitui a Polis (cidade) e consequentemente a política. O cuidado funda a cidade.
Percebe-se que o cuidado é uma categoria antropológica fundamental, pois constitui uma das grandes possibilidades para o ser humano. Pelo cuidado , o ser humano constrói a polis.
Todo o cuidado nasce ou, de todo, não existe no seio ético de cada ser humano, como exercício daquilo a que chamamos vontade, isto é, começa a haver cuidado quando alguém decide iniciar o movimento que o concretiza. Sem esta vontade, que é o desencadear do ato de cuidado, não há cuidado algum. Neste sentido, o cuidado é sempre um ato livre.
Todo ato de cuidado é um ato político, isto é, de relação entre dois ou mais seres humanos. É precisamente como ato político que o ato de cuidar importa, pois é, assim, que se constitui no ato que cria e mantém a polis (cidade). Ao longo da história da humanidade conseguimos perceber que foi através do exercício do cuidado que as cidades conseguiram sobreviver e, mais do que isso, viver com humana dignidade. Lembremos o pessoal de saúde que costuma se sacrificar em muitas catástrofes ou como agora em tempos de pandemia.
O cuidado necessita de pessoas que ponham o bem-comum acima de tudo, não o bem dos próprios, não de minorias ou de maiorias, mas de todos. Morre com a dignidade de um ser humano dada pela dignidade de um outro ser humano que o amou até à morte. É fundamental criar uma cultura do cuidado, que estabeleça solidariedade entre as pessoas. É uma responsabilidade que cabe à sociedade no seu conjunto. A capacidade de criar a cultura do cuidado não pode ser uma coisa dispensável, não só pelas pessoas que estão em causa, mas pela sociedade no seu conjunto.
Não há cuidado algum, sobretudo a este nível antropológico, ético e político que não implique uma grande angústia.
Mas é a angústia da paz do final da Missa de Bach.
A grandeza e o mistério da vida são precisamente isso, criar uma humanidade capaz de ter gestos de fraternidade, de paz, de aceitação, de ir ao encontro de quem precisa.
Prof. José Pereira da Silva