O místico medieval Ricardo de São Vítor (1096-1141) escreveu: “Onde está o amor, aí há um olhar”. Não raro, este olhar que o amor nos requer dá-se no contexto de um sofrimento que teríamos absolutamente preferido não viver, mas da qual aprendemos alguma coisa – e alguma coisa de belíssimo – a que, sem ela, não teríamos chegado. Quantas pessoas passam a ter uma nova perspectiva da vida após um sofrimento marcante; ou realizam uma revisão da própria vida trilhando novos e melhores caminhos; e outras encontram um novo e profundo sentido para a vida até então superficial.
O mundo da dor é vasto e, quando menos o esperamos, encontramo-nos a habitá-lo. Os sentimentos que então irrompem são muitos: recusamo-nos a aceitar, entramos em revolta, em depressão; gostaríamos de fugir para longe; perguntamo-nos porquê?, porquê precisamente a mim?, porquê precisamente agora?; sentimo-nos despreparados para uma travessia muito árdua.
E, pelo menos neste último ponto, temos razão. O nosso tempo fez da doença, da velhice, da deficiência um verdadeiro tabu. Vigora uma espécie de interdito em relação á vida vulnerável: cada um tem de viver estas situações em estreita solidão, sem grandes ajudas para aprofundar a sua experiência como um recurso, e não como fatalidade. No entanto, a verdade é bem diferente deste desígnio traçado pelo egoísmo ou pelo medo.
Um dia escutei um pai falar do seu filho com Síndrome de Down, dizia: “Este meu filho é um membro importante da nossa família. É o nosso ponto de união. Fez de nós pessoas diferentes, mais humanas e atentas aos outros. Alargou a nossa capacidade de amar”.
A experiência desse pai é a experiência de muitas pessoas que possuem um membro frágil em sua família. Experiência que leva a cada membro da família a repensar a própria vida e seu sentido. A humanizar a própria vida abrindo-se a valores mais profundos da existência e sobretudo ensina-nos a amar de forma mais profunda. É um despertar do nosso ser.
A vida não incumbe a todos nós a tarefa de despertar o nosso ser, de nos tornarmos humanos? Esse pode ser um processo longo e por vezes doloroso. Envolve um crescimento para a liberdade, uma abertura do nosso coração às outras pessoas, sem continuarmos a nos esconder por trás de máscaras ou dos muros do medo e do preconceito. Significa descobrirmos a nossa humanidade comum. O amor é uma substância cicatrizante que possibilita crescermos.
Conviver com pessoas com fragilidades ou portadoras de deficiências mentais leva a um profundo processo de humanização. Pessoas que não são muito capazes no campo intelectual ou prático, mais que são muito bem-dotadas nos relacionamentos. Com elas descobrimos que a maturidade humana chega quando começamos a unir nossas mentes e nossos corações.
Não podemos crescer espiritualmente se ignoramos nossa humanidade, assim como não podemos nos tornar plenamente humanos se ignorarmos a espiritualidade.
Devemos recuperar a realidade do limite e reconciliarmo-nos com ela. Só existimos enquanto limitados. Todos os dias fazemos a experiência de que “somos feitos assim”: cada um tem a sua história, a sua estrutura psicológica, o seu caráter, as suas doenças interiores etc.
Devemos acolher-nos e amar-nos, não de malgrado, mas através de todas as nossas feridas e das nossas debilidades. E aos outros como a nós mesmos!
Prof. José Pereira da Silva