O escritor Gustave Flaubert (1821-1880) nos dá um conselho valioso: “Ler para viver” – essa frase tem um significado denso de ler em busca de uma vida plena.
Ler, com efeito, não é tanto uma atividade intelectual, mas um esforço cansativo,embora fecundo, de interrogar-se e interpretar-se a si próprio e à realidade circundante: trata-sede ler não um livro, mas o mundo, as situações, os acontecimentos através daquilo que já “está escrito” porque outros o colocaram “preto no branco”.
Mais em profundidade, ainda, ler-se a si mesmo: se pensarmos bem, o próprio corpo da pessoa que lê torna-se muitas vezes ícone de interioridade, uma garantia palpável de recolhimento, diremos quase que o leitor se faz um com o livro, e que dessa maneira envolve no ato de ler inclusive o próprio autor dessas páginas.
A leitura, de fato, é uma conversa, um diálogo com quem está ausente e pode estar a milhares de quilômetros no tempo e no espaço: é receber a palavra de um outro e fazê-la própria, interpretando-a no diálogo da própria intimidade.
O escritor Marcel Proust ( 1871-1922), no termo da sua obra monumental “Em busca do tempo perdido”, abria-lhe novos horizontes, ilimitados, asseverando que os seus leitores tinham sido “leitores de si próprios”, porquanto o seu livro era apenas o meio a eles oferecido para que lessem dentro de si.
Também e sobretudo na nossa sociedade da imagem, ler continua a ser uma operação de grande humanização, surpreendente na sua simplicidade: não são precisas tecnologias nem instrumentos complicados, nem sequer iniciações particulares, porque, no fundo, como recordava o poeta Fernando Pessoa (1888-1935) “o único prefácio de uma obra é o cérebro de quem o lê”.
Não foi por acaso que os medievais faziam derivar a palavra latina “intellegere” – literalmente compreender – de “intus leggere”, ler a partir de dentro.
Infelizmente, hoje lê-se pouco, aduzindo-se entre as desculpas o pouco tempo à disposição. Mas as opções que fazemos no uso do nosso tempo são reveladoras daquilo que para nós conta verdadeiramente na vida.
Ler pode tornar-se antídoto para a monotonia dos dias, luta contra o desgaste do tempo, manifestação de que somos senhores, e não escravos do tempo: nesta sua valência, é anti-idolátrico, gesto de resistência contra um dos ídolos da nossa época, uma autêntica opção ética.
O ato de ler é dessedentar-se numa fonte que não se esgota. Quem de nós, diante de um livro interessante, não fez a experiência de como ele assume cores novas segundo os momentos, de como emana perfumes inebriantes, segundo as estações? O livro é um objeto estranho: vemo-lo, avaliamo-lo, desfolhamo-lo, pousamo-lo, reencontramo-lo.
Uma frase é relida, uma passagem familiar ou obscura é novamente decifrada. Ler um livro significa realizar uma operação de leitura do mundo e da história, e aceitar que este desejo já habitou homens e mulheres diversos que diversamente viveram e diversamente escreveram.
Ler é percorrer um itinerário potencialmente infinito,porque “se no fim fechei o livro – escrevia Virginia Woolf (1882-1941) – foi só porque a minha mente estava saciada, não porque esgotei o seu tesouro”. Vamos ler!
Prof. José Pereira da Silva