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domingo 22 dezembro 2024
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Fé e Razão – Habitar consigo e escutar-se

Precisamos de beleza não só a da Criação, mas sobretudo a da vida, dos laços. Os meses em casa devido a pandemia abriram-nos bruscamente os olhos para verdade de que a família não é só onde se come ou dorme, mas onde se vive. A beleza que devemos alcançar, e que depende só de nós, e não do nosso dinheiro ou das decisões do governo, é a da vida e dos laços.
Nestes meses, todos encontramos, das maneiras mais variadas, muitas pessoas que sofriam, e nós, sendo bons, quisemos, como primeira atitude, resolver a causa do seu sofrimento, mas muitas vezes fracassamos. Podemos fazer uma coisa: ter compaixão, padecer juntos. É justo e necessário, obviamente, procurar dar um teto a quem não o tem, ou dar de comer ao faminto, mas aquilo que, verdadeiramente, cada um de nós tem necessidade absoluta é de ter alguém que partilhe conosco. Que esteja junto de nós. Que, em primeiro lugar, viva conosco o mesmo destino de pobres e de sofredores; porque há muitos gêneros de pobreza e de sofrimento.
Tentar viver junto dos outros a penitência e a alegria do caminhar. Percorramos se pudermos, os caminhos de quem está ao nosso lado e de quem amamos. Percorramos as estradas da humanidade que significa estar junto do ser humano. E assim remediaremos a dor que é a mãe de todas as dores: a solidão, a principal razão da angústia do ser humano. Do homem que no seu íntimo está só, tragicamente só. Do homem que não pode subsistir sozinho, mas precisa, pelo contrário, de uma vida com outros.
Tempo para olhar, ou melhor, para contemplar. Sim, porque habitualmente olhamos as pessoas ou as coisas, mas não as vemos. Não tempos tempo para deter o olhar , habituado a responder ao estímulo de alguma coisa que o atrai de maneira repentina. Ou então olhamos aquilo que nos é dito para olhar: os nossos olhos são atraídos por aquilo que foi pensado para nos seduzir, para chamar a nossa atenção.
Não é por acaso que, muitas vezes, constatamos “não vi, não me dei conta”, só porque uma coisa não se impõe ao nosso olhar.
É preciso mudar e exercitar o olhar : sobre uma praia ter os olhos abertos para o céu; deter-se a ver o mar que está sempre mudando de cor e de forma entre outros. É assim que se aprende a “ver com o coração”, como aconselhava o Principezinho de Saint-Exupéry.
Então, ao abrir os olhos do nosso coração, podemos dedicar-nos a contemplar, a ver em grandemente . Assim se começa a ver verdadeiramente aquilo que existe e vive ao nosso lado, ainda que muitas vezes não nos apercebamos; treinamo-nos a admirar e a acolher o inesperado, o que é desconhecido e diferente daquilo que pensamos.
Tempo propício para exercitar-se a refletir sobre a própria vida. Também está é uma operação não espontânea, árdua, mas é fundamental escutar as perguntas que nos habitam. Perguntas que não podem ser eludidas a não ser removendo-as, ou distraindo-nos, inebriando-nos de ativismo. Ocasião para nos deixarmos habitar, com calma, pelas perguntas cruciais: como está a minha vida? Aonde cheguei? O que me falta?…
Schopenhauer anotava que “o homem é um animal metafísico”, habilitado a colocar-nos perguntas que vão além do visível. O que quer dizer viver e morrer? O que significa amar verdadeiramente? O ser humano é um animal capaz de colocar-se estas interrogações, porque quer interpretar a sua existência, e dela quer dar-se e dar razões. Não há respostas claras e certas? Não é por isso que tem de se interditar de escutar estas perguntas , pelo contrário!
É preciso , então, encontrar tempo para ficar a sós, no silêncio, e demorar-se nas perguntas que nos habitam. Se nunca fizermos este trabalho, arriscamo-nos a viver à superfície, sem estarmos conscientes, sem conseguir ler a nossa vida e a avaliá-la nas suas expectativas e nos seus fracassos.
Os latinos diziam que cada ser humano amadurecido deve conseguir “habitare secum”, a habitar consigo, a escutar-se. Não é uma operação narcisista, mas um ato de verdade sobre si e sobre a relação com os outros. É uma necessidade para agarrar a própria vida nas mãos com um mínimo de lucidez, e assim aprender a amar-se a si e aos outros com inteligência e criatividade.

Prof. José Pereira da Silva