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segunda-feira 25 novembro 2024
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Fé e Razão – Cuidar das palavras que curam: medicina narrativa

Alguém já parou para pensar o que faz um escritor? Cuida das palavras. Cultiva-as em silêncio.
Prepara o terreno, arroteia-o, antes de semear. Dobra-se sobre a página com aquele humilde cuidado, em virtude do qual renuncia aos advérbios gastos, atributos redundantes, não se afunda em areias imóveis ( expressões esvaziadas de significado, manipuladas ao ponto de significar o seu contrário).

A sua máxima aspiração é dar vida a páginas cuidadas,como diz Thomas S. Eliot ( 1888-1965): “onde cada palavra está em casa, no seu lugar para apoiar as outras”. Uma página cuidada é um edifício estável, resiste à intempérie; é o espaço acolhedor, de bom grado uma pessoa habita-a.

O escritor é um camponês, um arquiteto. Um escritor dá-se conta e sofre com isso quando as palavras perdem o seu espírito vital. Ao escrever, aplica-se para o restituir. Cada palavra é conjunto de relações. Quando se rompe um destes laços ( por inabilidade, descuido ou vontade de manipulação), a palavra perde seu espírito. Pode tornar-se nociva, veneno. Segundo Platão: “O falar incorreto não é só coisa por si inconveniente, mas faz mal também às almas”. Ser contagiosa, desencadear segundo ítalo Calvino (1923-1985): “uma epidemia pestilenta da linguagem”.
Por sorte , sabemos onde encontrar os anticorpos: na literatura. A literatura ensina a cuidar das palavras. Não só. As palavras, por seu lado, podem cuidar de nós. As palavras curam.

Na última década está se redescobrindo o valor da narração em âmbito da medicina. A iniciadora, Rita Charon, sentiu a necessidade de estudar literatura para ser uma médica melhor. E fundou, em 2000, na Universidade de Columbia, o primeiro Programa de Medicina Narrativa.

O que oferece a literatura à medicina a mais (em vez) que os fármacos, que cuidados especializados? A doença não é somente um conjunto de sintomas, uma condição anormal do organismo humano; é uma experiência complexa que envolve corpo, alma, psique do paciente, e a comunidade de que é membro.

Não é por acaso que a língua inglesa tem três palavras para dizer doença: desease, illness, sickness. A primeira define a doença na sua dimensão objetiva, do ponto de vista científico, considerando-a um conjunto de desordens orgânicas. A segunda define-a na sua dimensão subjetiva, como é percebida pelo paciente, com os seus aspectos psicológicos e emotivos. A terceira palavra diz respeito à dimensão social da doença, a maneira como o doente é reconhecido na sociedade.

Podemos imaginá-las como os três eixos de um espaço no qual a doença deve ser enfrentada. Nesta perspectiva tridimensional a leitura faz três coisas preciosas pela medicina. A primeira é dar palavra à doença enquanto illness. Através de uma linguagem metafórica, repleta de emoções e descrições, oferece à medicina páginas que podem ser consideradas fichas clínicas paralelas. Complementares às médicas e não menos preciosas para compreender a doença. Ao lado frio junta-se a palavra emotiva.

A segunda coisa e representar a doença na sua complexidade, ou seja, nas suas múltiplas relações: entre paciente e doença, médico e doença, médico e paciente, paciente e sociedade entre outras. Quando uma pessoa adoece, adoece com ela parte da comunidade (família, amigos, colegas), que deveriam ser igualmente envolvidos na cura.

A terceira coisa é fazer experimentar: a literatura produz experiência, permite entrar no mundo da doença e identificar-se com pontos de vista diferentes (médico, paciente, sociedade). Oferece uma experiência literária que veicula conhecimento.

Fazer isto quer dizer tomar parte do processo de cura; quer dizer reduzir a distância entre pessoas sãs e doentes. A relação entre palavra, doença e cura é crucial. Quando são a mente e a alma a adoecer, a linguagem pode tornar-se inapreensível, explodir no delírio ou petrificar-se no silêncio ( da afasia, da vergonha, da exclusão): extremos que a literatura desde sempre procurou escutar, voltando a dar voz e dignidade ao doente.

O escritor é também um pouco de médico? Em particular quando escreve sobre doença? Talvez o seja ao quadrado: ensina a cuidar de palavras que curam.

Prof. José Pereira da Silva