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sábado 23 novembro 2024
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Fé e Razão – Autorreferencialidade e alteridade

A pandemia de covid-19 deixou claro que todas as pessoas estão no mesmo barco. Um convite para superar o eu, porque o tempo é do nós.

É preciso reequilibrar os fortes impulsos para a atomização, individualismo e autorrefencialidade que com freqüência se resolvem na sistemática redução do outro a elemento puramente ornamental de um horizonte ético que só se reflete a si próprio.

Numa época de mediação digital em que as pessoas apenas vêem a imagem refletida. O indivíduo encontra-se paradoxalmente só, a olhar a sua imagem construída digitalmente. Uma imagem que não se assemelha em nada a uma pessoa real. Mulheres e homens sós e profundamente desconhecidos uns dos outros.

Vidas sociais fundadas exclusivamente sobre uma narração autorreferencial de si, na qual o outro é sistematicamente reduzido a projeção das próprias expectativas, objeto de conforto, de reforço da autoestima, de espelho chamado exclusivamente a restituir a bela imagem social que esforçadamente se constrói.

Há milhares de pessoas que, apesar da vivência de relações familiares, amizades, na realidade é composto por mulheres e homens sós, aplicados no esforço titânico de construir-se uma imagem pública impecável e irremediavelmente não verdadeira.

É fundamental reconhecer o outro na sua alteridade, e não como projeção das suas idéias ou desejos.

A autorreferencialidade do ser humano não é, todavia, um tema exclusivo da modernidade. Encontramo-lo até na primeiríssima página da Bíblia. No Gênesis a fragilidade intrínseca do homem, como o material com que é formado, é intensificada pela solidão a que é relegado, apesar da proteção e da riqueza do jardim em que vive.

Por isso, Deus quer dar-lhe uma “ajuda que lhe seja semelhante”, ou melhor, “que lhe esteja defronte”.

A ausência de relação condena o homem à solidão e, em definitivo, à morte. A criação da mulher, ao contrário, pode inaugurar um novo espaço relacional que permite a vida, impressa no nome de Eva, “mãe dos viventes”, na medida em que o homem reconhece a alteridade que lhe está defronte. Não se trata de um projeto concluído, mas de um desafio sempre aberto.

Já na resposta do homem “carne da minha carne, ou seja, dos meus ossos, será chamada mulher”, porque do homem foi tirada, podemos perceber uma distância do projeto criador de Deus e o eco da tentação de reconhecer o outro a partir de si.

É uma tentação profundamente aninhada no interior da tradição ocidental, a partir do “conhece-te a ti mesmo” socrático. Os perigos de uma compreensão autorreferencial que não só não encontra o outro, como reduz à projeção própria.

Prof. José Pereira da Silva