Quando lemos a narrativa de O Pequeno Príncipe parece configurar uma inocente historieta infantil acerca de príncipes e de rosas, de meninos que não sabem desenhar coisas dignas de serem apreciadas pela superior inteligência anquilosada dos socializados adultos.
Antoine de Saint-Exupéry um dos últimos aventureiros da humanidade e homem que sabia ver com olhos capazes de uma lógica de cuja profundidade a maioria das pessoas cegas para o essencial, habitantes de um ocidente moribundo, porque afogado na superficialidade de um materialismo boçal, escreveu o que pode ser dito como uma nova e inaudita odisséia.
O pequeno príncipe, um pequeno Ulisses parte de seu lar , que lhe parecia demasiado estreito, mas onde havia um ser que amava e que o amava, para descobrir o mundo. O que descobre, se bem que rico em seu pormenor, revela-se superficial, quando não perverso. Se a sua amiga, a Rosa, o tinha ofendido, não o fizera por perversidade, apenas por natural tagarelice de coisa bela, frágil, mas substantiva, querendo mostrara valia de sua mesma substância.
Depois de muito peregrinar e de muito ver, o nosso viajante acaba por perceber a importância verdadeiramente única da sua amiga. É com ela que está bem, é ela que o completa.
Trata-se da metáfora do retorno à essencial substância da mesma humana vida,impassível de ser vivida atomicamente. O absurdo de uma existência desumana para o ser humano atinge o seu ápice nas duas últimas cenas de encontro do Principezinho com típicos seres humanos reduzidos: com o agulheiro ferroviário, que faz a mudança de linha para comboios que anonimamente transportam magotes de gente de não se sabe onde para não se sabe onde, numa comutabilidade especial sem finalidade propriamente humana, em que agulheiro e transportados mais não são do que eventualmente dispensáveis elementos mecânicos de uma máquina que os transcende e que os domina.
O mais caricato dos encontros finais dá-se com um mercador de pílulas contra a sede: “Engole-se uma por semana e já não se tem necessidade de beber”. A vantagem está na poupança do tempo que, assim, se pode gastar para fazer o que se quiser, ao que o Pequeno Príncipe contrapões que, dispondo de tal tempo, se dirigiria a uma fonte.
Toda esta principesca odisséia se pode resumir como uma viagem de afastamento da fonte do humano sentido e de retorno a essa mesma fonte. A humanidade é uma multiforme sede lógica: o itinerário da vida do ser humano é um caminhar, por vezes lento e penosos, em busca de fontes, num espaço infinito que, por vezes, é um radical deserto. Mas é neste deserto, onde é improvável encontrar fontes de água, que estas tem de ser procuradas, sob pena de o ser humano soçobrar como ser humano.
Esta fonte é dupla: o amado para que se tende e o amor com que se tende para esse mesmo amado. A fonte do Principezinho é a sua Rosa, mas é, também, o amor que por ela tem. É o amor em ato de busca do amado. Mesmo que nunca se encontre a fonte final, a fontalidade do amor já é bastante para quem procura: “É bem ter tido um amigo, mesmo que se vá morrer”. Este amigo é o que nos aponta o caminho – a raposa.
Se o que “embeleza o deserto” é “que oculta algures um poço…”, o que embeleza os seres humanos é que encerram a possibilidade de amar o outro ao ponto de carregar com ele até esse poço, transporte sem o qual nunca lá chegariam. É um ato pessoalíssimo, não mecânico, mas carnal, em que a humana carne carrega a humana carne, em que o amigo não abandona o amigo: nunca. Apenas a morte separa quem assim ama, a morte, esse selo único da autenticidade do amor. Mas a morte sela a fidelidade do amor. O que me comove neste pequeno príncipe é a sua fidelidade por uma flor.
A maior lição deste divina obra, todos nós, sem a nossa Rosa, sem a nossa raposa, sem o nosso narrador ou o nosso Principezinho, sem a sua carne , que é a marca viva de seu espírito, nada mais somos do que, na expressão de Fernando Pessoa, uma “cadáver adiado que procria”. Numa humanidade sem carne e sem futuro humano.
Prof. José Pereira da Silva