Pesquisa de médicos brasileiros da Oncoclínicas publicada pelo Journal Of Clinical Oncology (JCO) mostra que pessoas com câncer ativo ou metastático têm risco maior de complicações e morte pelo coronavírus; Plano Nacional prevê que pacientes oncológicos entrem na lista de prioridades em um momento futuro, mas critérios para que esta parcela da população possa ter acesso às doses ainda não estão claros
Logo após o anúncio do Ministério da Saúde confirmando o plano de imunização nacional contra a Covid-19, uma questão se coloca entre os pacientes oncológicos do Brasil: afinal, quem tem câncer deve ser priorizado entre os grupos que irão receber as primeiras doses da vacina? Estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que o país conta com mais de 1,5 milhão de pessoas que dependem de tratamento oncológico, número que tende a aumentar de acordo com a previsão do Instituto Nacional do Câncer (INCA) de novos 625 mil novos diagnósticos para 2021.
Segundo o oncologista Bruno Ferrari, fundador e presidente do Conselho de Administração do Grupo Oncoclínicas, de maneira geral, o novo coronavírus não tem um impacto diferenciado em pessoas com câncer sem outras comorbidades. “Todavia, as sequelas que a contaminação pelo vírus pode trazer a esse público implicam não apenas no andamento das condutas de combate ao tumor maligno durante o período de controle da infecção pelo vírus, como pode gerar um comprometimento severo à saúde de pacientes imunossuprimidos – categoria na qual se enquadra uma parcela considerável das pessoas em tratamento ativo contra o câncer”, diz.
O médico destaca ainda que com o avanço no conhecimento sobre o novo coronavírus, fatores determinantes para as chances de mortalidade entre a população em geral se tornaram mais claros, mas há limitações no acesso a dados específicos sobre pacientes oncológicos. Levando isso em conta, um time de especialistas do Grupo Oncoclínicas realizou uma pesquisa detalhada sobre o prognóstico dessa parcela de brasileiros que contraíram a COVID-19, com base na análise de informações obtidas nos primeiros meses da pandemia no Brasil, entre final de março e início de julho de 2020.
Os resultados, publicados pelo periódico científico Journal of Clinical Oncology (JCO)*, apontam, entre outros fatores, que idade, hábitos de vida pouco saudáveis – especialmente o tabagismo – , estadiamento do câncer e a linha terapêutica de controle do tumor adotada foram prioritariamente determinantes para o desfecho dos pacientes oncológicos que apresentaram sintomas do vírus.
“Em linhas gerais, dos 198 participantes avaliados, provenientes de quatro regiões do país – Sul, Sudeste, Nordeste e Centro Oeste – o pior prognóstico em decorrência da Covid-19 esteve associado ao câncer ativo, progressivo ou metastático em comparação àqueles que demonstram um câncer estável ou bem controlado, por exemplo. Além disso, pacientes com leucemia e outros tumores hematológicos se mostram mais suscetíveis à infecção pelo coronavírus, enquanto os que possuem câncer de pulmão têm um grave aumento no risco de morte. A faixa etária mais avançada e o histórico de consumo de cigarros também figuraram como complicadores em pacientes oncológicos acometidos pelo novo vírus”, explica Bruno Ferrari, primeiro autor do estudo.
Dados reforçam defesa de vacinação prioritária em casos de câncer
Dos pesquisados, 167 (84%) tinham tumores sólidos e 31 (16%) neoplasias hematológicas. A maioria dos pacientes estava em terapia sistêmica ativa ou radioterapia (77%), principalmente no ambiente não curativo (64%). A mortalidade geral foi de 16,7% – seis vezes mais alta na comparação com o índice global de letalidade pelo novo vírus, que está em 2,4%. Em modelos univariados, os fatores associados à morte após o diagnóstico de COVID-19 foram tratamento em um ambiente não curativo, idade superior a 60 anos, tabagismo atual ou anterior, comorbidades coexistentes e câncer do trato respiratório.
A constatação reforça a percepção de outros estudos realizados pela comunidade científica ao redor do mundo, entre eles uma análise recente feita por membros da Sociedade Alemã de Hematologia e Oncologia (DGHO) a partir de informações de pessoas com perfis de origem de diversos países.
Para Bruno Ferrari, tais dados podem contribuir para a defesa por um programa de imunização prioritário dedicado a pacientes oncológicos. “A análise endossa as recomendações para termos ações que contribuam para minimizar os riscos de infecção pelo chamado SARS-CoV-2 entre o grupo de pacientes com câncer”, afirma.
Respostas mais concretas sobre a segurança da vacinação contra o coronavírus para esta parcela da população dependem ainda de estudos específicos. Mas levando em conta a experiência na aplicação de outros imunizantes, a contra-indicação para pacientes oncológicos que estejam com a imunidade comprometida se refere ao uso de vacinas produzidas a partir de vírus vivo. “Já imunizantes produzidos com vírus inativado ou fragmentado, como a da gripe, são inclusive recomendados para pacientes oncológicos. A imunização é aliada valiosa que ajuda a salvar muitas vidas”, ressalta o especialista.
Entre as vacinas desenvolvidas para a COVID-19 há opções com vírus inativados e também fragmentados, que podem ser consideradas como opção viável para pessoas com câncer.
“Estamos aguardando os detalhes sobre a quantidade de vacinas a serem liberadas em cada fase. As informações ainda são pouco claras no momento para analisarmos as possibilidades. Mas o que podemos adiantar é que defendemos uma separação entre os grupos de risco que beneficie os pacientes oncológicos, para que estes tenham um tratamento mais favorável contra o câncer, que por si só já demanda muito deles. Uma infecção mais grave é um exemplo do que pode vir a ocorrer com uma pessoa em tratamento de câncer que contraia o novo coronavírus e esse é um risco que pode ser evitado”, defende Bruno Ferrari.
De toda forma, o fundador e presidente do Conselho de Administração do Grupo Oncoclínicas lembra: mesmo que haja priorização no calendário de vacinação para pacientes com câncer, até a publicação de dados consistentes de vacinação nesta parcela da população, caberá à equipe assistencial responsável pela linha de cuidado avaliar o risco de contágio, tipo de tratamento e grau de imunossupressão no momento de orientar cada indivíduo sobre tomar ou não o imunizante. Segundo artigo publicado em janeiro na revista Blood Cancer Discovery, ainda serão necessários estudos detalhados de vacinação em pacientes com câncer para conclusões definitivas.
Pacientes que já tiveram câncer e não estão mais em tratamento, a princípio, deverão seguir as indicações de vacinação de acordo com sua faixa etária e/ou outros problemas de saúde.
Grupos prioritários para vacinação no Brasil
No dia 18/01 teve início a distribuição simultânea de vacinas em todo o País e muitos estados já iniciaram a imunização dos primeiros grupos prioritários, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). Apresentado oficialmente em 16 de dezembro, o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 está dividido em dez eixos que incluem: descrições sobre a população-alvo para a vacinação, as vacinas já adquiridas, a operacionalização da imunização, o esquema logístico de distribuição das vacinas e as estratégias de comunicação para uma campanha nacional.
De acordo com o Ministério da Saúde, os critérios para escolha dos grupos prioritários levaram em conta a parcela da população com maior risco de agravamento de óbitos e a manutenção dos serviços essenciais. No entanto, o órgão pondera que a relação prevista ainda poderá ser alterada.
Na primeira fase, estão os trabalhadores da Saúde, população idosa a partir dos 75 anos de idade, pessoas com 60 anos ou mais que vivem em instituições de longa permanência, população indígena e comunidades tradicionais ribeirinhas.
Em um segundo momento, entra a população com mais de 60 anos em geral, pessoas com comorbidades que apresentam maior chance para agravamento da saúde como portadores de doenças renais crônicas, cardiovasculares, obesidade grave, anemia falciforme e câncer, entre outros. Também constam como grupos prioritários para receber a vacina professores, forças de segurança e salvamento, funcionários do sistema prisional, trabalhadores industriais e trabalhadores portuários. Essa etapa seguinte, sem data para início, prevê que a imunização ocorra conforme disponibilidade de doses da vacina. No total, todo esse universo de prioridades somado representa mais de 77 milhões de brasileiros.
Especificamente no casos dos pacientes oncológicos, a mais recente versão do Plano Nacional, atualizado em 25 de janeiro, indica que os beneficiados seriam “indivíduos transplantados de órgão sólido ou de medula óssea; pacientes oncológicos que realizaram tratamento quimioterápico ou radioterápico nos últimos seis meses; neoplasias hematológicas”. Todavia, a pasta da Saúde não deu detalhes sobre como esses critérios serão averiguados ou se serão adotadas estratégias para verificação dos pré-requisitos a serem cumpridos, seja por meio de documentos comprobatórios ou algum tipo de cadastro.
Há ainda muitas outras questões pertinentes a serem respondidas sobre como serão endereçadas situações de pessoas que fazem uso de outros tipos de medicações para combate ativo aos tumores (tais como drogas alvo-moleculares, imunoterápicos etc), ou ainda casos específicos de pessoas que receberam o diagnóstico, mas ainda aguardam cirurgia ou liberação para iniciar o tratamento. O receio de especialistas, sociedades médicas e entidades de apoio a pacientes é que tais indivíduos não tenham suas reais necessidades de imunização contempladas, ficando à margem de qualquer solução em um futuro próximo.
Covid-19 pelo mundo
Em Portugal, onde o programa de vacinação já está bem avançado e é destaque na Europa, o programa já entra em seu terceiro lote de distribuição. Ainda assim, entidades ligadas ao câncer, como a Liga Portuguesa contra o Cancro (LPCC), vêm se manifestando formalmente sobre a necessidade de um olhar do governo local para a inclusão de pessoas com câncer na lista de grupos prioritários. Por lá, associações defendem que pacientes oncológicos com maior risco de morte se infectados sejam priorizados.
No Reino Unido, um documento produzido pela por um consórcio de entidades denominado UK Chemotherapy Board – composto entre outros pela Association of Cancer Physicians (ACP) e pelas demais sociedades médica, de patologia, de radioterapia e enfermagem voltadas ao cuidado oncológico – também destacou a importância da vacinação para pacientes com câncer e já está servindo de guia para profissionais médicos e pacientes em geral no esclarecimento de dúvidas sobre a imunização nestes casos.
Outro líder mundial em termos de vacinação contra o novo coronavírus, Israel optou por contemplar toda a população do país, mesmo que não seja de grupos prioritários, promovendo a imunização em massa com rapidez e eficiência. Esta foi uma das ações estratégicas adotadas pela nação, entre outras em termos de logística, velocidade e distribuição do material, para deter a pandemia.