Mais de 57.000 casos da doença tropical foram notificados no país neste ano e dezenas de cidades já declararam epidemia
Situação pode se agravar com tendência histórica de pico no mês de abril
Enquanto trabalha para se prevenir de uma possível chegada do coronavírus, o Brasil vive um estado de alerta pelo novo surto de uma doença tropical já conhecida no país: a dengue. Desde que um novo sorotipo da doença voltou a circular em território brasileiro, no ano passado, o número de pessoas infectadas vem crescendo. Neste ano, o Brasil voltou à zona endêmica e dezenas de municípios em distintas regiões já declararam epidemia. Ao menos 57.485 casos foram notificados ao Ministério da Saúde em 2020 ?quase a metade deles apenas na última semana registrada pelo boletim epidemiológico do órgão, de 18 a 25 de janeiro?. O número é levemente superior ao mesmo período do ano passado e quase o triplo do mesmo período de 2018. A situação que já é preocupante ainda pode piorar, visto que historicamente o pico da dengue costuma ocorrer no mês de abril, em razão do período chuvoso.
O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, já afirmou que “você tem muito mais chance de morrer de dengue no Brasil, hoje, do que de coronavírus”. A pasta que ele comanda confirma nove óbitos pela doença neste ano e contabiliza 41 ainda em investigação. Mas a quantidade de pessoas que morreram de dengue neste ano pode ser bem maior, conforme dados mais atualizados das secretarias estaduais. O Paraná, sozinho, confirma seis óbitos somente na última semana (entre 4 e 10 de fevereiro) —eles ainda não foram contabilizados no boletim do Ministério da Saúde. O avanço da dengue tem preocupado gestores municipais, que pedem ao Governo federal e à população que não reduzam a atenção ao enfrentamento do mosquito Aedes aegypti, transmissor da doença, diante do verdadeiro pânico que tem sido gerado com a expansão do coronavírus no mundo.
“O que nos preocupa agora é que estamos atravessando um momento de crise em relação à dengue e não estamos em nível central olhando pra essa crise com o mesmo empenho por conta do desvio de atenção para ao coronavírus, que também é preocupante pela sua imprevisibilidade. Mas precisamos tratar também do problema que a gente já conhece”, diz o presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Wilames Freire. O avanço de casos de dengue é comum no início do ano por conta das chuvas, que aumentaram nas últimas semanas. A diferença deste momento é que o país vive um novo surto da doença, algo que historicamente acontece entre dois e três anos por conta da recirculação de novos tipos de vírus, segundo especialistas. Quando um paciente contrai algum dos quatro sorotipos de vírus da dengue, fica imune a ele e cria certa resistência temporal quanto aos demais. Dessa forma, um paciente pode ter dengue até quatro vezes, mas cada nova incidência da doença pode apresentar gravidade maior. A preocupação neste ano é com a recirculação do tipo 2 no país depois de um hiato de 12 anos. Nos últimos anos, predominou o subtipo 1, com presença do 4 em algumas regiões brasileiras.
“Os surtos são recorrentes, e a dengue chega a ser uma doença quase de criança porque a gente vem esgotando as pessoas suscetíveis a ela e quem nasce agora é quem nunca pegou a doença. Mas temos hoje muita gente que nunca teve contato com esse sorotipo e, sempre que há uma nova recirculação de uma variante, a gente observa esse aumento”, explica a bióloga Denise Valle, do Instituto Oswaldo Cruz. Ela afirma que os cuidados com o coronavírus e com a dengue são completamente diferentes, assim como as característica de comportamento de cada vírus. “O coronavírus tem uma característica respiratória e, apesar de estar chegando agora, o que se espera é que tenha um pico maior no inverno, quando as pessoas ficam mais em casa. Já o Aedes aegypti tem maior incidência no verão, quando temos o período chuvoso e o mosquito se reproduz. A gente está falando muito do coronavírus, mas no Brasil hoje temos problemas maiores, como a dengue e a chikungunya”, avalia.
Até o momento, os Estados do Acre, do Mato Grosso do Sul e do Paraná são os que têm apresentado maior incidência proporcional da doença. Segundo o último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, esses são os três Estados que superaram 100 casos por 100.000 habitantes no país. Desde o início do ano, a pasta vem alertando para a possibilidade de surto em 13 estados. O EL PAÍS solicitou ao Ministério da Saúde o número de cidades que decretaram epidemia por dengue, mas a assessoria de imprensa informou não ter esse dado.
54% dos casos de dengue estão em São Paulo e no Paraná
São Paulo concentra um terço dos casos prováveis de dengue do país em números absolutos. O Estado confirmou 10.890 casos em janeiro, enquanto o Ministério da Saúde contabiliza 18.658 casos prováveis. Várias cidades do Estado ?como Sorocaba, Lorena e Ribeirão Preto? já decretaram epidemia por apresentarem uma curva acima do limite da tendência de casos notificados por várias semanas consecutivas. Sorocaba quase dobrou o número de casos observados no mês de janeiro somente na primeira semana de fevereiro, passando de 104 para 190 notificações. Todas as áreas da cidade apresentaram casos positivos da doença em 2020. O secretário da Saúde, Aldemir Watanabe disse estar intensificando as ações para eliminar criadouros do mosquito, com ampliação dos horários das equipes de trabalho e recolhimento de objetos que acumulam água por caminhões. “Precisamos que as pessoas se conscientizem sobre a importância de eliminar o vetor desta doença”, pede.
O segundo Estado com mais pessoas infectadas é o Paraná, que concentra 27% dos casos de dengue notificados ao Ministério da Saúde até o dia 25 de janeiro. Neste mês de fevereiro, o Estado entrou em estado de alerta para epidemia. Além disso, pelo menos 50 cidades já declararam viver um período epidêmico, quando há número de casos acima do esperado em diversos bairros.
A bióloga Denise do Valle explica que o avanço da dengue que começou no ano passado e começa a atingir novas proporções neste ano acontece depois de um momento atípico de redução logo após a epidemia de zika vírus, em 2015 e 2016, que desencadeou diversos casos de microcefalia em recém-nascidos. “Nós tivemos uma redução mais forte do que esperávamos em 2017 e 2018, e eu atribuo isso ao temor gerado após o zika. As pessoas ficaram muito alarmadas, saíram da zona de conforto e passaram a tomar mais cuidado”, analisa. Ela diz que o cuidado com as arboviroses está na prevenção, cuja responsabilidade é do Governo, mas também de cada um. “É uma doença transmitida por um mosquito doméstico”, acrescenta. O Conasems diz que tem implementado programas tanto para capacitar agentes de saúde nos municípios quanto para orientar a população sobre os cuidados para evitar o acúmulo de água parada, onde o mosquito se reproduz. “O início do ano é um período extremamente crítico porque é época de chuvas no Brasil, então a nossa preocupação com isso é grande”, diz o presidente da entidade, Wilames Freire.
Além da dengue, outras arboviroses como chikungunya e zika ?cuja transmissão também ocorre pelo Aedes aegypti? também merecem atenção neste período chuvoso. O Ministério da Saúde notificou 2.340 casos prováveis de chikungunya até 25 de janeiro em todo o país. Metade deles está concentrada no Espírito Santo e no Rio de Janeiro, sendo que neste último houve um óbito. “O vírus que provoca a chikungunya está circulando de uma forma importante e, como ele não está forte no eixo do Sudeste, a gente fala menos. Já tivemos epidemia no Rio de Janeiro e agora estamos vendo uma migração para o Espírito Santo”, afirma Denise do Valle. A bióloga lembra que as ações para prevenir todas essas doenças são as mesmas: impedir a proliferação do mosquito. Os cuidados passam, por exemplo, por impedir a formação de poças em casa e limpar reservatórios de água.