Na última semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou uma audiência pública ao longo de dois dias para discutir o decreto que institui a política nacional de educação para alunos com deficiência.
A medida do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) entrou em vigor em outubro do ano passado, mas foi suspensa pela Corte em dezembro — em uma decisão individual do ministro Dias Toffoli, depois ratificada pelo plenário — após o Partido Socialista Brasileiro (PSB) entrar com uma ação alegando que a nova política é inconstitucional.
Agora, o STF está ouvindo especialistas e organizações a favor e contra o decreto antes que os ministros se manifestem oficialmente sobre o assunto.
Mas, para a pedagoga Maria Teresa Mantoan, pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), esse tema sequer deveria estar sendo debatido pelo tribunal.
“O decreto é claramente ilegal, pra que todo esse circo?”, questiona a educadora.
Na sua avaliação, o decreto 10.502/2020, que incentiva a criação de escolas especializadas para atender pessoas com deficiência que “não se beneficiam” da educação regular, contraria a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996.
“A LDB se baseou no preceito constitucional de que a educação é para todos segundo a capacidade de cada um e não admite escolas e turmas especiais, porque elas não oferecem o básico, como etapas e níveis de ensino, e não podem oferecer certificados”, explica Mantoan, que coordena o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença da Unicamp.
“No Brasil, só existe um sistema de ensino, que é o ensino comum regular. Quem está em uma escola especial não está cumprindo o período de escolaridade obrigatória. Qualquer escola assim já deveria ter sido fechada desde 1996.”
Procurado pela BBC News Brasil, o Palácio do Planalto disse que o tema deveria ser comentado pelo Ministério da Educação, que não respondeu o pedido de posicionamento enviado pela reportagem.
‘O que tem que mudar é a escola, não a pessoa’
A medida vem sendo defendida pelo governo Bolsonaro como um avanço que vai beneficiar a todos os estudantes.
O ministro da Educação, Milton Ribeiro, argumenta que a convivência entre uma parcela dos alunos com deficiência mais grave e os alunos sem deficiência é impossível e chegou a afirmar que a presença dos alunos com deficiência “atrapalha” os outros na sala.
“Ele não tem que dizer que o aluno com deficiência atrapalha. Ele tem que munir a escola de conhecimentos e inovações para que ela consiga dar conta de todos os estudantes”, critica Mantoan.
Ribeiro depois se desculpou pelo uso do termo, mas reafirmou suas críticas ao que chama de “inclusivismo”, termo que, segundo ativistas, teria sido criado pelo ministro para dar uma conotação negativa à defesa da inclusão escolar de todos os estudantes.
Com uma experiência de seis décadas anos como professora, Mantoan afirma, no entanto, que a nova política não representa um avanço, mas um retrocesso de quase 30 anos na educação brasileira.
A pedagoga explica que incentivar as escolas especiais seria voltar às normas instituídas em 1994 e que vigoraram até 2008, quando uma nova política passou a estabelecer como norma a integração de pessoas com deficiência no ambiente escolar normal.
Mantoan conta ter sido uma das responsáveis por redigir a política de 2008 e que ela foi elaborada a partir da Constituição e da LDB para que a educação especial fosse uma modalidade complementar de ensino e não um sistema à parte que substituísse o sistema regular.
A pesquisadora explica que a política de 1994 tratava a deficiência pelo viés médico, como um problema do indivíduo. Por sua vez, a política de 2008 entendia a questão pela ótica social, ou seja, que a deficiência resulta da interação da pessoa com o meio. O problema está nos obstáculos que o meio impõe a essa pessoa, e seria preciso acabar com essas barreiras.
“Isso mudou tudo”, diz a pesquisadora. “Quando o ministro da Educação fala em deficiência grave ele mostra que não é uma pessoa bem informada sobre o assunto, porque essa forma de enxergar a questão ficou no passado. O que tem que mudar é a escola, não é a pessoa.”
‘Querem dar dinheiro público para escola privada’
Um resultado da política de 2008 é refletido pelo censo escolar: em 2020, 93,3% dos 1,3 milhão de crianças e adolescentes com deficiência na educação básica estavam matriculados em escolas regulares. Em 2005, eram apenas 23%.
A pesquisadora da Unicamp afirma que este é um dos motivos da criação de uma nova política pelo governo Bolsonaro.
“Toda essa discussão em torno do decreto só serve para encobrir que o verdadeiro motivo da nova política: tentar recuperar os alunos que as escolas especiais perderam, fazer renascer essas escolas e confundir o pais dizendo que eles têm uma escolha entre a escola especial e a comum, quando na verdade a escola especial não deveria existir há tempos”, afirma Mantoan.
Para a educadora, com o decreto de Bolsonaro, recursos que antes eram destinados à inclusão escolar passarão a ser destinados para as escolas especializadas.
“É tudo uma cortina de fumaça para dar dinheiro público para escolas privadas”, diz.
“O que me deixa chateada é ver essa cortina sendo incentivada pelo Supremo. Ficam fazendo esse mise-en-scène, convidam todo mundo, querem ouvir um lado e o outro em vez de simplesmente cumprir a lei.”
O STF informou à BBC News Brasil que ainda não há previsão de quando a ação direta de inconstitucionalidade do novo decreto será votada em plenário.