Na casa de grades cor cinza mora a dona Júlia, velhinha esperta e curiosa, daquelas que se disfarça de árvore pra poder dar uma espiada no vizinho. Ela sabe de tudo o que acontece na rua, quem brigou, quem tá desempregado, quem trocou de emprego, quem tá de carro novo, quem vendeu o carro e agora só anda de úber e, dizem as más línguas, sabe até quem está traindo ou sendo traído, nada acontece sem que a dona Júlia saiba. A qualquer hora do dia que você passe na rua, lá está a dona Júlia de plantão proseando com as amigas.
Ela vigia a rua, durante o dia nem precisa de segurança lá porque os olhos da dona Júlia veem tudo e a dona Júlia sabe de tudo.
Então, ladrões, tremei, a dona Júlia está de olho em vocês.
Com certeza ela conhece cada um, homem, mulher, criança ou cachorro, que mora naquela rua e qualquer um que não seja dali, vai ser logo registrado pelos olhos de águia da velhinha. Ah, a danada conhece também cada carro, moto ou bicicleta da rua. Qualquer veículo que passe por ali sem pertencer a rua será observado atentamente pela dona Júlia. E no final da tarde será devidamente informado ao clube.
E a velhinha deve ser boa de conversa porque o dia inteiro tem gente conversando com ela, mas tem os horários de maior movimento como no começo da manhã e no final da tarde. É sempre muito engraçado, junta, talvez, uma dezena de respeitadas senhoras, que vem até de outras ruas do bairro e vai saber se até não tem alguma de outro bairro, com filhinhos e netinhos e a criançada brinca a vontade correndo pela calçada, enquanto mamães e vovós proseiam com a dona Júlia. É criança correndo pra lá, é criança correndo pra cá, tem criança com os famosos caldinhos verdes escorrendo pelo nariz, tem sempre uma que cai, uma que chora, cinco que gritam, tem aquelas que atravessam a rua sem olhar e lá vem o grito de mamães e vovós ameaçando ir embora se a criança sair de novo e vinte segundos depois lá está a criançada atravessando a rua novamente, afinal, criança não é boba e sabe que as mamães e vovós só vão sair dali quando a noite cair de vez, para retornar na manhã seguinte.
O bate-papo delas é tão conhecido que até já recebeu um nome…, é o “clube da dona Júlia” e juro, queria saber de onde vem tanto assunto para conversarem o tempo todo. Deve ter de tudo como atualização das últimas fofocas, novelas, “causos” da criançada, “causos” do passado, “causos” como aqueles que começam assim: “Sabe, ouvi dizer que…”, deve ter reclamação dos maridos, briga de vizinhos e etc…
Só imagino como deve ser a casa daquelas mamães e vovós…e a da dona Júlia então? Mora ela, o marido bêbado que sai de manhã e volta à tarde, a filha que trabalha o dia inteiro e um filho que até hoje não sei o que faz, tem época que está sempre por ali e tem época que some. Mistérios que somente a dona Júlia poderia explicar. Mas, quem arruma a casa?
Mas de tudo o que mais me impressiona é a capacidade que elas tem de se entender. Todas falam ao mesmo tempo, xingam as crianças, riem, gargalham, as crianças gritam, choram, caem e as mamães e vovós se entendem no meio de toda essa balbúrdia, é impressionante. Um desafio à lógica.
E, ai de você, se bebeu um pouco a mais na noite anterior, pois é um mistério inexplicável, dona Júlia vai saber e, consequentemente, a rua inteira também.
Para aqueles que moram sozinho, cuidado, pois a dona Júlia, de alguma maneira que só ela sabe, vai descobrir que trouxe uma namorada nova para casa.
Sinceridade, acho que até o time de cada morador ela sabe, impressionante.
Já até ouvi dizer que o setor de inteligência e espionagem (se é que isso existe) da polícia pensa em contrata-la para uma assessoria, é mole?
E, às vezes, me pego pensando se em toda rua não tem um “clube da dona Júlia”?
“Crônicas e Contos do Escritor” O clube da dona Júlia
jan 23, 2020RedaçãoCrônicas e Contos do EscritorComentários desativados em “Crônicas e Contos do Escritor” O clube da dona JúliaLike
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