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sexta-feira 8 novembro 2024
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“Crônicas e Contos do Escritor” – E vamos nos acostumando

Alguns anos atrás, talvez uns quatro ou cinco, li uma das mais famosas (se não a mais) crônicas da Marina Colasanti. “Eu sei, mas não devia”.
Sem dúvida, uma das melhores crônicas que já li, publicada em 1972 no Jornal do Brasil.
Mais tarde, em 1995, foi reunida com outras crônicas, dos mais variados assuntos, da mesma autora e publicada em formato de livro pela editora Rocco.
Em 1997, essa maravilhosa publicação recebeu um prêmio Jabuti.
Essa crônica nos incentiva a fazer uma reflexão, entre outras coisas, sobre como o tempo em que vivemos nos obriga a avançar sem apreciar o que está ao nosso redor. Nos incentiva a perceber como nos acostumamos com situações adversas e como nos acostumamos a agir no automático.

E a crônica, escrita há cinquenta anos, continua atual. Continuamos os mesmos.
Hoje, podemos dizer que nos acostumamos com o errado, aceitamos passivamente inversões de valores. Quando foi que o certo passou a ser errado e vice-versa? Eu perdi esse momento, perdi essa virada ou, talvez, fui apenas aceitando aos poucos tudo isso.

Permitimos, sem lutar, pequenas concessões progressivas e, assim, vamos perdendo nossa identidade, nossas crenças, nossas verdades.
Quando Marina Colasanti, sutilmente, nos coloca a questão se somos o que somos ou aquilo que esperavam que nós fossemos, o que respondemos? O que você responderia?

No fundo, estamos sufocados por circunstâncias mundanas, com as quais conseguimos nos relacionar. Conseguimos? Conseguimos ou impomos a nós mesmos?
Na verdade, somos apáticos, sem identidade, sem alegria. Somos apenas espectadores da nossa própria vida.

Veja, de uma certa maneira, vivemos a vida que entendemos e imaginamos, como ideal de acordo com padrões da sociedade e, muitas vezes, deixamos de lado o que nos faria sentir especiais. E a gente se acostuma…
Olha essa frase da crônica de Marina: “A gente se acostuma a sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.” E não é verdade?

Aos poucos a gente se acostuma, aceita.
Afinal, nos acostumamos com políticos safados, desonestos, inescrupulosos, nos acostumamos com dinheiro na cueca, na mala, no apartamento. Nos acostumamos com caixas dois, mensalões, com Renangates e tantos outros. Quem se importa?

Nos acostumamos com carros que ultrapassam pelo acostamento nos congestionamentos na estrada, com motoristas mal-educados, com a violência no trânsito. Nos acostumamos com a ineficiência da saúde pública, nos acostumamos com escolas de má qualidade, com professores mal pagos e alunos mal-educados. Simplesmente, nos acostumamos com ruas esburacadas, com asfaltos de má qualidade. Nos acostumamos com as quedas de energia e a falta de água.

Nos acostumamos com a violência urbana e com menores de idade roubando celulares…é só pra comprar droga ou, quem sabe, só pra tomar uma cerveja…ah, tadinho. Nos acostumamos com as saidinhas que colocam bandidos nas ruas, nos acostumamos com golpes por telefone. E aceitamos, convivemos com tudo isso.

“Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia”. “A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acola´”. Disse Marina Colasanti.
E, não é assim?
E, desse jeito, vamos nos acostumando, aceitando em ser atropelados pela vida. Somos arrastados por furacões invisíveis e, sem perceber, acabamos concordando e… aceitando.

E, desse modo, vamos aceitando, concordando, acostumando…