E vamos de um pequeno conto!
O pingo vermelho hesitou, se pendurou por uns segundos e caiu na calçada. Foi como uma explosão, imediatamente se abriu, formando uma pequena mancha. Dois passos cambaleantes o deixaram para trás.
Carros passavam. Um ônibus parou e três pedestres, alheios ao que acontecia, subiram. Mais dois passos cambaleantes e mais um pingo e outro.
Se apoiou na parede de uma loja de antiguidades, cheia de coisas antigas úteis e inúteis, e parou.
Tentava recuperar o fôlego, tentava respirar, tentava viver. A mancha vermelha na calçada cresceu, foram os pingos que aumentaram ou foi o fato de ter parado?
Na vitrine da loja um abajur de cabeceira, cinquenta anos de vida seria o mínimo para ele, observava silencioso o que acontecia na calçada. Só Deus poderia saber o que tanto aquele abajur já havia testemunhado em sua longa vida. Sonos profundos, noites de insônia, sonhos e pesadelos, amores tórridos, talvez sexo selvagem. Infidelidades, discussões, brigas, choros, alegrias e tristezas, mas, muito provavelmente, ainda não tinha visto uma cena como aquela, difícil dizer, mas vai saber…
Alheia às experiências do abajur, ela recomeçou a andar, deu mais dois passos e outros pingos explodiram na calçada.
Um executivo passou por ela, em sua mente muitos pensamentos para observar as pobres e tristes manchas de sangue.
O que passa em sua cabeça? Talvez como ganhar mais dinheiro, talvez como pagar as dívidas, talvez indeciso em como manter a vida de aparências…como contar as verdades doloridas para a família, talvez sejam os negócios que o perturbam, dúvidas, perdas, problemas pessoais, talvez com a esposa, talvez os filhos, enfim…
Seguiu em frente pela calçada, alheio à luta pela sobrevivência, alheio aos pingos vermelhos.
Uma mulher, com um bebê no colo, passou, disfarçou e seguiu em frente, melhor não se envolver.
Três adolescentes cruzaram com ela e nada perceberam. Os dois rapazes estavam mais interessados na linda e alegre menina que os acompanhava.
Mais passos cambaleantes. Mais pingos na calçada.
Um homem olha angustiado para o relógio, para o celular e para a rua. O carro do aplicativo está demorando e ele, como sempre, com pressa, atrasado. Lá vem outra bronca da chefia. Mais uma vez chegaria atrasado ao trabalho que não suporta e, mais uma vez, a bronca de um chefe que odeia, mais uma vez vai “engolir sapo” por causa de míseros trocados que ganha, dinheiro que mal paga as contas. E quem se importa?
E os pingos continuam a cair e explodir.
Ela segue, cambaleante, ainda apoiada nas vitrines da loja de antiguidades. Agora, é uma velha poltrona que a espia, sim, ela se lembra, já viu aquilo.
Aquela pequena mancha em seu assento, tantas vezes lavado para esconder a verdade, denuncia, grita, mas é um grito silencioso.
Sem retribuir o olhar da poltrona, ela segue…pingando…se esvaziando…sente a vida escapando pelo buraco que a pistola fez.
Mais uma vez, outra mulher, outra violência…até quando? O fim de um relacionamento tóxico trouxe a bala, nada perdida, pelo contrário, certeira.
Ela cambaleia e cai, ninguém se importa. É só mais uma vítima do feminicídio.
E alguns ainda vão acusá-la de ter tentado recuperar sua liberdade, sua honra, sua vida.
E, muitos, ainda vão dizer que está pagando o preço da infidelidade.
Até quando ela vai ser a culpada? Até quando impedida de viver?