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sexta-feira 22 novembro 2024
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Coronavírus: 9 erros que levaram às 100 mil mortes no Brasil (e uma lição que a pandemia deixa até agora)

Quanto tempo leva para contar até 100 mil? Nessa pandemia, foram 164 dias no Brasil, do primeiro caso até passarmos das 100 mil mortes por causa do novo Coronavírus.

O total cresceu mais gradualmente no começo, do primeiro óbito, em 12 de março, até pouco antes do país passar de 10 mil, em 9 de maio. Aí a curva de contágio empinou de vez. As mortes dobraram em menos de duas semanas. Um mês depois, eram mais de 50 mil. Agora, neste sábado (8/8), chegaram a 100.477.

É como se a maior tragédia da aviação brasileira (o acidente de avião da TAM no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, que matou 199 pessoas) tivesse se repetido 505 vezes desde 26 de fevereiro, quando o primeiro caso foi oficialmente confirmado.

Seriam três desastres de avião daquele porte por dia, todos os dias, ao longo de mais de cinco meses. Ou equivalente à população inteira de cidades como Jataí, em Goiás, Barra do Piraí, no Rio de Janeiro, Mairiporã, em São Paulo, e Abreu e Lima, em Pernambuco.

O Brasil é agora o único lugar do mundo além dos Estados Unidos que superou esse patamar. Mais de 161 mil americanos já morreram por causa da pandemia.

A taxa brasileira é a 10ª pior entre 209 países monitorados pelo Our World in Data. Mas estão à nossa frente países como San Marino e Andorra, que têm populações muito pequenas e só algumas dezenas de mortes. Ou França, Itália, Reino Unido, Bélgica e Suécia, onde as mortes diárias vêm caindo há meses e, atualmente, estão em um dígito.
Mas a nossa taxa de mortes por milhão de habitantes é a segunda maior entre os dez países mais populosos do mundo, segundo o site Our World in Data, da Universidade Oxford, no Reino Unido. São 473 mortes/milhão, enquanto os Estados Unidos têm 487 mortes/milhão.

‘Nossa incompetência’
Mas, enquanto os números de mortes diárias vêm caindo em diversas partes do mundo, estes números continuam muito altos por aqui.
As mortes diárias variaram entre 541 (em 2/8) e 1.437 (em 5/8) na última semana, e estabelecemos há muito pouco tempo um novo recorde nacional em toda a pandemia: em 29 de julho, 1.595 novos óbitos foram confirmados.

É em meio a uma epidemia ainda bem intensa que passamos do marco simbólico das 100 mil mortes, que escancara o fracasso do Brasil em evitar uma tragédia sem precedentes.

“Chegar a 100 mil é um sinal da nossa incompetência. Certamente, poderíamos ter feito melhor”, diz Natália Pasternak, doutora em microbiologia pela Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Instituto Questão de Ciência, dedicado à divulgação científica.

A visão é compartilhada por líderes, pesquisadores e profissionais de saúde com quem a BBC News Brasil conversou para entender os erros do país no combate à covid-19.

“Esse número mostra que, como país, não estamos conseguindo conter o vírus”, diz Ester Sabino, que fez parte do grupo que fez o mapeamento genético do coronavírus no Brasil.
A médica, que é professora da Faculdade de Medicina da USP, alerta que o surto brasileiro ainda está longe do fim. “Se nada mudar e continuarmos com mais de mil mortes por dia, o total de mortes vai chegar a 200 mil em no máximo cem dias.”

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Por isso, é fundamental compreender quais foram os equívocos que levaram o Brasil a este ponto — e qual é a lição que a pandemia deixou para o país até agora.

Erro nº1: Não nos preparamos para essa pandemia
Um ponto no qual o Brasil e outros países do mundo falharam foi não terem se preparado para uma pandemia como essa.

“Já era falado há algum tempo que poderia acontecer, que não era ficção como muita gente pensava, mas os esforços internacionais para sermos capazes de responder a isso ainda eram incipientes”, diz Sabino.
A cientista avalia que o fato da pandemia anterior, de H1N1, e de epidemias causadas por outros coronavírus, como as de Sars e Mers, não terem sido tão graves como se imaginou inicialmente contribuiu para isso.
Nos 16 meses da pandemia de H1N1, por exemplo, houve 493 mil casos confirmados e 18,6 mil mortes, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
As epidemias de Sars e Mers tiveram 8 mil e 2,5 mil casos respectivamente, enquanto agora já passamos dos 19,5 milhões de casos e das 723 mil mortes por covid-19 no mundo.
“Como não houve antes um impacto como o de agora, as autoridades pensavam que tinham ferramentas suficientes para lidar com um evento desse tipo”, diz Sabino.

Erro nº 2: Não houve um plano nacional contra o coronavírus
Ministro da Saúde de máscara

O primeiro caso foi confirmado no Brasil quase dois meses depois da China alertar a OMS sobre o novo coronavírus. Havia então mais de 81 mil casos e 2,75 mil mortes em 38 países.
Mesmo assim, quando a pandemia finalmente atingiu o país e mesmo depois disso acontecer, não houve um plano nacional — ou mesmo planos em escala regional — para o combate ao coronavírus, diz Sabino.
Sem um consenso entre os governos federal, estaduais e municipais, houve decisões desencontradas e descompassadas, o que faz com que hoje a epidemia esteja arrefecendo em algumas partes do país e se agravando em outras.

“Controlar uma epidemia é difícil, mas não é impossível. Só que a gente precisa formular um bom plano para isso. E até hoje não temos um, a não ser aguardar por uma vacina ou esperar a pandemia passar”, diz a cientista.
Sabino diz que a resposta do país foi prejudicada pela troca de comando no Ministério da Saúde. Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich pediram demissão do cargo em plena pandemia, por divergências com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), e ainda hoje a pasta é liderada por um ministro interino, o general Eduardo Pazuello.

“O Mandetta criou um plano, mesmo que no meio do caminho, mas depois saiu, e isso acabou fragilizando a nossa reação, porque você não consegue refazer uma política de saúde de uma hora para a outra”, diz Sabino.

Erro nº3: Bolsonaro minimizou a pandemia
Jair Bolsonaro com a bandeira do Brasil ao fundo
Em dos seus primeiros comentários sobre a pandemia, o presidente disse que estava sendo “superdimensionado o poder destruidor” do coronavírus. Ele também criticou as medidas de isolamento social ao dizer que a covid-19 era uma “gripezinha” ou um “resfriadinho”.

Bolsonaro afirmou ainda que a crise gerada pelo coronavírus era uma “fantasia” e que havia uma “histeria” em torno do assunto. Também disse que “todos iremos morrer um dia”.

Questionado sobre os recordes de mortes, respondeu: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”. Agora, ao comentar sobre as mais 100 mil mortes, disse que “vamos tocar a vida e se safar desse problema”.

Natália Pasternak diz que a postura do presidente foi muito prejudicial para o combate à pandemia: “A pandemia nos encontrou com a pior liderança política possível, no pior momento”.

Erro nº4: Não foram feitos testes em massa

Outro equívoco que o Brasil cometeu (e ainda comete) foi não testar em massa a população, diz a pneumologista Margareth Dalcolmo, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Os dados mais recentes do Ministério da Saúde apontam que, entre 1º de fevereiro e 31 de julho, foram realizados 2.135.487 exames laboratoriais para diagnóstico da covid-19. Os números não incluem testes em hospitais e clínicas particulares, apenas na rede pública.

Isso representa apenas 1% da população brasileira e ainda está bem longe da meta de testar 12% dos brasileiros com exames laboratoriais, apresentada por Pazuello ao Senado em 23 de junho.

Sem uma ampla testagem, não é possível rastrear as pessoas que entraram em contato com quem estava infectado, para isolar aquelas que também tivessem se contaminado. A OMS ressaltou diversas vezes que isso é fundamental para quebrar a cadeia de transmissão de um vírus.

Nos países bem-sucedidos no combate à pandemia, essa proatividade foi fundamental, diz Dalcomo. “Esse foi o modelo da Coreia do Sul, que, para mim, foi o melhor modelo de combate à pandemia.”

Erro nº5: O isolamento social não foi suficiente

Dalcomo diz que outro fator que levou a tantas mortes foi a falta de um lockdown propriamente dito. Esse é o nome dado ao bloqueio total de uma cidade ou região.

De um lado, lugares onde a curva de infecção se acelerava de forma preocupante resistiram em adotar a medida — como São Paulo, o Estado com maior número de casos e mortes, e o Amazonas, que viu seu sistema de saúde entrar em colapso.

De outro, locais onde o lockdown chegou a ser decretado por governos ou pela Justiça, as autoridades muitas vezes não conseguiram restringir a circulação ao nível recomendado pela OMS, de 70% de isolamento.
Em Fortaleza, no Ceará, o índice não passou de 55% enquanto o lockdown vigorou, de 8 a 30 de maio, segundo a empresa In Loco, que criou um índice baseado nos dados de geolocalização de celulares. O nível foi semelhante em São Luís, no Maranhão, que viveu um lockdown de 5 a 18 de maio.

No Estado do Rio, onde alguns municípios (mas não a capital) decretaram a medida também em maio, o isolamento atingiu no máximo 57%. Na época, a Fiocruz enviou um posicionamento ao Ministério Público do Rio de Janeiro em que recomendava a adoção urgente de medidas mais rígidas de distanciamento social.
“Nós perdemos o timing”, diz Dalcolmo. Para ela, uma ação mais enérgica naquele momento poderia ter evitado mortes.
Pasternak concorda que quarentenas mais eficientes desde o início da pandemia, a exemplo de outros países atingidos antes pelo coronavírus, como China, Itália e Espanha, poderiam ter salvado vidas.
A pesquisadora cita como referência a previsão inicial feita pelo Imperial College, em Londres, de que o Brasil teria 44 mil mortes, caso estas medidas tivessem uma grande adesão da população e incentivo dos governantes.
“O isolamento exige engajamento social. Faltou uma comunicação efetiva e transparente com a população para conseguir isso em vez de as pessoas entenderem como um castigo. Se isso tivesse ocorrido, das 100 mil mortes, mais da metade teriam sido evitadas”, diz Pasternak.

Erro nº 6: A propaganda da cloroquina fez muita gente se expor ao vírus
Jair Bolsonaro exibe pacote de cloroquina

A imunologista Bárbara Baptista, pós-doutoranda da Fiocruz no Amazonas, avalia que a aposta do governo federal e de outras autoridades na eficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina para prevenir ou tratar a covid-19 contribuiu para o país ter tantas mortes.

Desde o início da pandemia, Bolsonaro defendeu publicamente estes supostos efeitos destas drogas, usadas contra doenças como lúpus e malária.

O Ministério da Saúde recomendou seu uso, associado com o antibiótico azitromicina. O Exército produziu milhões de comprimidos, e muitas cidades distribuíram gratuitamente o medicamento.
Mas, apesar de alguns estudos iniciais indicarem que estas drogas poderiam inibir o vírus, pesquisas mais robustas mostraram depois que não tinham esse efeito.

“Em uma pandemia, o que um governo diz tem peso. Infelizmente, governantes populistas falharam na orientação da população em relação à hidroxicloroquina”, diz Baptista.
A experiência da cientista em Manaus mostra que muitas pessoas acreditaram que poderiam prevenir a covid-19 com essa droga.

“A partir do momento que pensaram estarem protegidas, elas se expuseram mais. Mas, como não estavam, isso levou a um aumento do número de casos e, consequentemente, a um maior número de óbitos.”

Erro nº7: Os hospitais de campanha viraram um ‘problema’
Na opinião de Margareth Dalcomo, alguns Estados também erraram ao investir muitos recursos nos hospitais de campanha, porque, em muitos casos, havia leitos ociosos na rede pública que não estavam sendo usados por falta de recursos humanos e que poderiam ter sido reativados com a contratação de equipes temporárias.

Em alguns locais, a construção destes hospitais foi concluída tarde demais, quando a demanda já havia caído. Em outros, foram abertos mais leitos do que o necessário, fazendo com que os hospitais de campanha fossem subutilizados.

Há ainda os casos de possível corrupção, como no Rio de Janeiro, onde o Ministério Público investiga se houve desvios de recursos públicos.
“Em muitos casos, os hospitais de campanha acabaram sendo mais um problema do que uma solução”, diz Dalcomo.
A médica acredita que parte destes hospitais teria sido mais útil para receber pacientes com formas mais leves de covid-19 que não tinham condições de se isolar adequadamente em casa. “Eles poderiam ter sido usados como centros de acolhimento para essas pessoas.”

Erro nº8: Não conseguimos proteger os índios
A epidemia no Brasil começou pelos grandes centros urbanos, mas já se alertava desde o início que, quando chegasse às tribos indígenas, poderia causar muitas mortes, por estes grupos serem particularmente vulneráveis à covid-19.
Mas os avisos não impediram que os índios fossem seriamente afetados pelo coronavírus: pelo menos 633 já morreram e 22.325 adoeceram, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
A pandemia acentuou antigos problemas enfrentados pelas tribos, como falta de equipes de saúde suficientes ou especializadas, e escassez de alimentos e itens de higiene. E, assim como no resto do país, houve falta de testes, equipamentos de proteção e respiradores nas regiões onde vivem.
O assunto chegou ao Supremo Tribunal Federal, que determinou por unanimidade que o governo federal adote medidas para proteger os indígenas.

“Estas populações podem ser contaminadas pelas próprias equipes de saúde; na região amazônica, pela invasão do território por madeireiros e grileiros; e, em aldeias próximas dos centros urbanos, os próprios indígenas precisam ir até as cidades e podem se infectar”, diz Paulo Tupiniquim, coordenador da Apib.

Ele ressalta que, quando o vírus atinge essas comunidades, há um desafio maior de manter um distanciamento social.

“Os indígenas vivem em coletividade. Entre os caiapós do Mato Grosso, por exemplo, há cinco ou seis famílias em uma mesma maloca. Se uma pessoa pega…”, diz Tupiniquim.

Erro nº9: Não conseguimos proteger os mais pobres
Pessoas em favela de ManausDireito

A pandemia também atingiu primeiro os mais ricos, por ter chegado ao país por meio de quem havia viajado ao exterior. Mas já se sabia que o vírus se propagaria rapidamente quando atingisse as comunidades mais pobres.

Mesmo assim, faltaram políticas públicas para evitar as mortes justamente entre os mais socialmente vulneráveis, diz a pesquisadora Roberta Gondim, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz e uma das coordenadoras da Sala de Situação Covid nas Favelas.

Um levantamento da Fiocruz divulgado em julho confirmou que, nas regiões onde a pobreza urbana é mais acentuada e faltam serviços básicos, como saúde e saneamento, a doença avança mais rapidamente.

E também mata mais. No Rio de Janeiro, a taxa de letalidade foi de 19,47% nas áreas da cidade com alta concentração de favelas, mais do que o dobro do registrado nas áreas sem favelas (9,23%).

As condições precárias de vida impedem adoção de medidas individuais de proteção recomendadas pela OMS, como o distanciamento social ou a possibilidade de deixar de trabalhar para ficar em casa.

Além disso, doenças pré-existentes que agravam a covid-19 são mais frequentes em pessoas em estado de vulnerabilidade social. E há menor oferta de leitos e acesso a medicamentos e outros recursos capazes de evitar a morte do paciente.

Gondim diz que a situação só não foi pior porque as próprias comunidades correram para se organizar, mesmo sem o apoio do poder público em muitas regiões.

Os mais pobres também tendem a ser os mais prejudicados com a reabertura econômica que já ocorre em parte do país, prevê a pesquisadora. “As populações já vulnerabilizadas é que serão mais atingidas, dada a impossibilidade de acesso às ações protetivas.”

E qual lição a pandemia deixa até agora?
O coronavírus chegou ao país em um momento em que pesquisas científicas eram postas em dúvida por governos e autoridades e quando investimentos no setor eram suspensos ou cortados.

Mas a ciência, feita principalmente em instituições públicas e com recursos públicos, foi justamente um dos protagonistas no combate ao vírus no país, com estudos que ajudaram a compreender melhor um vírus e uma doença até então desconhecidos, pesquisas fundamentais para entender e prever o avanço da epidemia e com o desenvolvimento de equipamentos mais baratos que são essenciais para salvar vidas

“Espero que a gente tenha conseguido mostrar nesta pandemia que a ciência é necessária e que as pessoas levem isso em conta na hora de elegerem seus representantes”, diz Ester Sabino.

Natália Pasternak reforça a necessidade de investimentos “contínuos e consistentes” nesta área. “Ou estaremos em situação igualmente vulnerável em emergências futuras.”

Margareth Dalcomo avalia que a ciência brasileira sairá desta pandemia mais valorizada. “Apesar da perda de cérebros preciosos, por falta de condições adequadas para trabalhar, conseguimos produzir conhecimento, registrar patentes, desenvolver equipamentos a um custo menor, participar de estudos importantes. Acho que esse saber nacional nunca esteve tão próximo da sociedade civil como agora.”