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domingo 1 dezembro 2024
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Como será a defesa dos presos após invasões e vandalismo em Brasília

A Polícia Federal (PF) terminou nesta quinta-feira, 12, de autuar todas as pessoas presas após as invasões e depredações em Brasília.

No último domingo, 8, milhares de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ocuparam e depredaram o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Palácio do Planalto.

Ao todo, 209 prisões foram feitas no local pela Polícia Militar e a Polícia Civil do Distrito Federal.
Estas pessoas foram levadas ao Departamento de Polícia Especializada da Polícia Civil. Depois de passarem por exame de corpo de delito, foram encaminhadas para unidades prisionais.

Outras 1843 pessoas foram presas pela PF no acampamento montado em frente ao quartel-general do Exército na capital e levadas à Academia Nacional da corporação, onde foram identificadas, ouvidas e enviadas para prisões.
Tudo vem sendo acompanhado pela Defensoria Pública da União (DPU), a Defensoria Pública do Distrito Federal (DP-DF) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Agora, as mais de 2 mil pessoas presas começarão a se defender das acusações de terem praticado terrorismo, vandalismo, associação criminosa, atentado contra a democracia, entre outros crimes.
Todas responderão judicialmente, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

“Qualquer gesto que contrarie a democracia será punido. Todo mundo terá direito de se defender, todo mundo terá direito à prova da inocência, mas todo mundo será punido”, afirmou Lula durante a entrega do decreto de intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal, aprovado na terça-feira (10/1) pelo Congresso Nacional.

Audiências de custódia

O primeiro passo do processo judicial são as audiências de custódia.
Essas audiências foram delegadas pelo STF ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região e ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal para dar maior agilidade ao processo, porque haverá centenas de sessões, já que a maioria dos presos terá de passar por elas.

A exceção são as 684 pessoas que foram liberadas por “questões humanitárias”, segundo a PF, por serem idosas, terem problemas de saúde, estarem em situação de rua e serem pais acompanhados de crianças.
Elas ficarão em liberdade enquanto seus casos são analisados pelo Ministério Público Federal (MPF).

O restante dos presos foram encaminhados para prisões do Distrito Federal, onde blocos foram liberados para receber abriga-los — ficarão separados dos outros detentos, segundo a DPU e a DP-DF.
Eles passam por audiências de custódia desde segunda-feira (9/1), acompanhados por um advogado ou defensor público e um promotor.

O juiz não analisa na audiência de custódia os crimes praticados, explica o secretário de Acesso à Justiça da DPU, Murillo Ribeiro Martins.

“Não há uma discussão de mérito, se fez algo ou não ou como fez, se é inocente ou culpado, isso só vai ser feito no processo criminal, se ele for aberto”, explica à BBC News Brasil.
É verificado neste tipo de audiência em via de regra se houve abusos na prisão, a legalidade da prisão em flagrante e se o acusado aguardará pelo processo em liberdade ou não.
Mas, nestes casos específicos, os juízes das audiências de custódia devem se ater apenas aos abusos nas prisões e não vão determinar se o flagrante foi justificado ou se a pessoa ficará presa.
Essas decisões caberão ao Supremo, já que os presos nos atos em Brasília serão investigados no inquérito que corre na Corte, sob a alçada do ministro Alexandre de Moraes, sobre a organização e realização de atos antidemocráticos no país.

“Os juízes perguntam aos presos sobre a situação deles, se sofreram violência, seu estado de saúde, fazer sua qualificação, perguntar sobre endereço, renda, a defesa e o Ministério Público fazem suas alegações, e tudo isso é encaminhado ao STF, que vai decidir se solta ou mantém presos ou se converte a prisão em flagrante em prisão preventiva”, explica Gabriel Fonseca, defensor público do Distrito Federal, à BBC News Brasil.
Ele acrescenta que não há um prazo para essas decisões serem tomadas.

Denúncias de maus-tratos

Diversas acusações foram publicadas nas redes sociais de que as condições das pessoas levadas para a Academia da PF violavam os direitos dos presos, inclusive em vídeos e postagens feitas no local, porque eles puderam ficar com seus celulares naquele momento.

Um grupo de deputados, liderado por Carla Zambelli (PL-SP), exigiu providências da DPU para garantir a integridade física e moral dos detidos.

Mas a DPU, a DP-DF, e a Secretaria de Articulação Nacional do governo de Santa Catarina, que enviou uma advogada ao local, concluíram que as denúncias eram infundadas e que os detidos recebiam alimentação e água e tinham acesso a banheiros e atendimento médico, quando necessário.
Ninguém está mais na Academia, informou a PF.

Todos também tiveram acesso a advogados, e vários profissionais inclusive foram ao local para oferecer seus serviços, o que Gabriel Fonseca avalia que viola o código de ética da OAB.

“Isso é captação irregular de clientela, porque a pessoa está abordando as pessoas de forma ostensiva, e a pessoa pode constituir um advogado sem ter as informações necessárias a respeito de sua condição ou condições de arcar com as custas”, diz o defensor público.

Antonio Alberto do Vale Cerqueira, presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB do Distrito Federal, avalia no entanto que a situação é especial e deve ser tratada de forma diferente.

“Em outras situações, a conduta destes advogados seria antiética e aviltante, mas o que aconteceu foi que advogados chegaram lá e encontraram centenas de pessoas presas, sentadas em um pátio, que foram procurá-los, seria justificável que aceitassem uma causa ou outra”, diz Cerqueira.

No entanto, a OAB-DF está monitorando e pode tomar medidas contra associações e escritórios que fizeram anúncios na internet para oferecer seus serviços. “Isso é vedado, porque é advocacia predatória”, afirma Cerqueira.
Em paralelo, houve um esforço para colocar advogados em contato com os presos. O major Hugo Christiani foi um dos que tomou essa iniciativa e convocou voluntários por meio de suas redes sociais para atender quem estava detido.

“Comecei a observar as circunstâncias das pessoas ali e me chamou a atenção a ausência de apoio jurídico. Também recebi algumas reclamações de que esse direito não estava sendo plenamente atendido, e, como cidadão, decidi promover esse encontro de quem precisava de assistência com quem estivesse disposto a contribuir”, afirma Christiani.

O major afirma que cerca de 50 advogados do Distrito Federal se voluntariaram e que quase cem presos estão sendo assistidos por eles.

A BBC News Brasil conversou com um destes advogados, que relatou que está representando clientes que alegam que não estavam em Brasília no momento dos atos.

“Eles chegaram no domingo à noite, para dormir no acampamento, e voltariam no dia seguinte para suas cidades, queriam só participar de uma manifestação pacífica, não tinha outro objetivo, mas foram alvo de um mandado de prisão aleatório genérico, sem qualquer definição do que fizeram”, diz.

O advogado relatou ainda que os presos tiveram de assinar uma nota de culpa que descreve os crimes dos quais eles são acusados antes de serem encaminhados às prisões.

“Isso foi feito sem que eles passassem pela audiência de custódia, e a lei estabelece o prazo de 24 horas para a audiência ser feita, e só agora eles estão fazendo isso. É uma aberração.”
Murillo Martins, da DPU, esclarece que a nota de culpa é um procedimento de praxe que certifica que a pessoa que foi presa está ciente dos crimes dos quais é acusada.

“Não significa uma confissão”, diz Martins.
Tanto a DPU quanto a DP-DF formaram forças-tarefas para atender os presos que não tiverem condições de contratar advogados.

Prisões em flagrante

Um ponto questionado neste momento dos processos é se as prisões em flagrante foram feitas corretamente.
Não para as mais de 200 pessoas presas no domingo, por crimes como lesão corporal, dano a bem público, roubo, furto, por de arma branca, ato obsceno, desacato, entre outros, mas para aquelas detidas no acampamento.

Sua prisão foi determinada por Alexandre de Moraes, a pedido da Advocacia-Geral da União, junto com a ordem de que o acampamento fosse desfeito.

Na mesma decisão, o ministro determinou a prisão em flagrante dos seus participantes pelos crimes de preparação e execução de atos terroristas, associação criminosa, abolição violenta do Estado Democrático, golpe de Estado, ameaça, perseguição e incitação ao crime.

Uma prisão em flagrante pode ser feita, segundo a lei, quando uma pessoa é pega no momento em que pratica um crime ou pouco depois, quando é perseguida pela polícia por supostamente ser a autora de um delito ou quando é encontrada logo após com objetos que indiquem que ela cometeu o crime.

“Isso não ocorreu”, diz Rodrigo Salgado Martins, presidente do Instituto Nacional de Advocacia, uma associação de classe sem fins lucrativos, à BBC News Brasil,

O Inad enviou um ofício à OAB e ao Ministério de Direitos Humanos em que questionou as prisões em flagrante dos participantes dos acampamentos “um dia após o fato crime sem a existência de qualquer prova na participação dos (…) atos de vandalismo”.

“Não protegemos o vandalismo e a violência cometidas pelas pessoas que foram pegas no momento do fato, em flagrante delito, quem entrou e quebrou tem que ser preso”, diz Rodrigo Salgado Martins, “mas [protegemos] aquelas pessoas presas coletivamente no dia seguinte, sem individualização dos delitos cometidos por elas, sem nem saber efetivamente se alguém entrou no Congresso ou no STF ou se estava apenas ali na frente do quartel apenas se manifestando e exigindo um direito constitucional de liberdade de expressão.”

O advogado avalia que a prisão em flagrante de centenas de pessoas ao mesmo tempo, com um mandado judicial que não especifica o que cada uma fez, “foi um ato ilegal”.

“Se um juiz tivesse expedido um mandado de prisão preventiva baseado em provas do que a pessoa fez seria outra coisa. Não pode haver presunção de intenção em massa, isso é completamente contra o que a gente chama de garantismo [respeito aos direitos fundamentais e às garantias processuais], que sempre foi protegido pelo STF e tem sido colocado de lado”, afirma o presidente do Inad.

Gabriel Fonseca, do DP-DF, afirma que há uma “dúvida jurídica” sobre se estas pessoas poderiam ter sido presas em flagrante.

“O Supremo, que determinou a prisão, vai decidir, embora seja discutível, porque elas não foram presas logo depois, foi muito tempo depois. Isso certamente será questionado, mas precisa avaliar cada caso”, afirma o defensor público.
Fonseca explica que há pessoas que poderão aguardar o processo em liberdade caso cumpram alguns requisitos.
“Normalmente, réus primários, que cometem delitos sem gravidade concreta, que têm residência fixa, podem ser beneficiados”, afirma o defensor.

“Ou pode-se entender que é preciso converter a prisão em flagrante em prisão preventiva, se a pena máxima do crime de que a pessoa é acusada for de mais de quatro anos, ela for reincidente, ou for necessário para preservar a ordem pública, entre outras situações.”

Atos de terrorismo

Rodrigo Salgado Martins, do Inap, também questiona as acusações de terrorismo feitas contra as pessoas presas nos acampamentos.

A lei de 2016 determina que terrorismo ocorre quando pessoas, por “razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”, buscam causar danos ou destruição em massa, sabotar ou assumir o controle de serviços e instalações relevantes ou atentam contra a vida ou integridade física de alguém, para “provocar terror social ou generalizado”.

Mas a lei faz a ressalva de que isso não se aplica “à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais”.

Rodrigo Salgado Martins afirma que isso foi incluído na lei para evitar que fossem enquadrados cidadãos que buscam exigir seus direitos.

“O povo elege seus representantes, e, se a vontade destes representantes não estiver em consonância com a vontade do povo, vai ter manifestação, e aquelas pessoas estavam ali [no acampamento] para se manifestar”, afirma.
O advogado defende que a natureza das reivindicações não altera esse entendimento.

“Tenho certeza absoluta que pedir uma intervenção militar não é um ato de terrorismo, dizer isso é uma interpretação extensiva da lei, o que é proibido pela Constituição”, afirma.

“É a mesma coisa que dizer que não pode desconfiar das eleições, é completamente equivocado. Estamos passando no Brasil por uma fase em que infelizmente o STF assumiu um poder exagerado, e o Congresso deveria agir para limitar isso.”

O defensor público Gabriel Fonseca avalia que será difícil nas acusações individualizar as condutas das centenas de pessoas presas no acampamento a esse respeito e que será necessário discutir na Justiça o que cada um fez de fato.

“Acho difícil, por exemplo, que o simples fato de uma pessoa ter entrado na Esplanada, o que estava proibido, se caracterize como um ato antidemocrático. Será preciso comprovar individualmente, caso a caso, a participação na invasão ou nas depredações”, afirma.

Murillo Martis, da DPU, afirma não se possível dizer no momento se as pessoas presas podem ser enquadradas nestes crimes.

“A ação penal vai ser processada, e serão analisados os crimes praticados. Vai depender do que dizem os autos de prisão e as provas que forem apresentadas.”