I – O mito
As telas de cinema mostravam as paisagens rústicas e lindas do Oeste Americano. Carroções, histórias de amor e de coragem. O sonho, a luta, a conquista. Os índios pareciam sombras desenhadas nos altos das colinas. Em meio do desejo de construir uma nação, surgiu a imagem do cauboy, o arquétipo construído no movimento dos segundos e o desenho completo do herói, de arma à cinta, da rapidez movida pelo dedo no gatilho, penetrou na imaginação coletiva do povo americano. O herói livre, independente, forte, alto confiante, invencível, solitário como o Don Quixote, tornou-se o representante da américa.
II – O imaginário
“Os rastros de ódio” percorreram o mundo provocando lágrimas, despertando a emoção ao ver a imagem de John Wayne emoldurada pela saída da velha porta, a alma americana embriagou-se com essa cena. Em “O homem que matou o facínora” a construção de um mito nascido dentro da lenda, do fato e da psicologia. E assim, saindo do interior de uma bandeira e de uma história, a figura de John Wayne, de Clint Eastwood cavalgam as estradas desertas, rastreadas pela escuridão, apontando o caminho da solidão, do solo sem parada fixa. Essas imagens por meio do sangue da lenda habita a psique dos jovens, homens, mulheres da nação americana.
III – A transformação
O cinema caminha ao lado e da mesma maneira que todas as artes, acompanhando as demais e procura um lago, uma sombra, a necessidade de vestir roupas novas, de se transformar, de evoluir.
Não há documento referente à evolução da corrente sanguínea, da fermentação psicológica que abalou a velha estrutura do cinema de Hollywood; o que é verdadeiro é que a forma de fazer filmes enfrentou um processo de experimentação rebelde dos anos 60 e vestiu o manto da renovação na década de 70.
IV – A diluição do mito
Havia tumulto nas ruas, na copa das árvores, dentro do escritor James Leo Herlihy, quando o artista escreveu o livro “Perdidos na noite”. As palavras contaram uma história e bateram de frente com a mitologia do Velho Oeste. Dizem que choveu quando o livro foi publicado e a enxurrada levou heróis, memórias, casos profundos de amor para um esconderijo.
Quatro anos depois da publicação do livro, o roteirista Waldo Salt escreveu e transformou a obra literária num universo de cenas e movimentos.
O diretor Achlesinger percebeu que “Perdidos na noite” podia mudar a história da produção do cinema americano, o diretor entrara na essência da palavra “Inovação” por meio de seres perdidos na matriz das noites marcadas pela ancestralidade.
V – As contingências
O diretor centrou suas atenções na montagem de dois personagens centrais do enredo, o jovem Joe Buck e Ratso Rizzo. Para interpretar Joe Buck encontraram o jovem ator Jon Voight que, sentindo a importância do filme aceitou trabalhar pelo salário mínimo de ator. Para viver o papel de Ratso, convidaram Dustin Holfmann, jovem ator que vinha do sucesso de “A primeira noite de um homem”, seu primeiro sucesso no cinema. O agente de Holfmann não concordou que o ator representasse o personagem Ratso, para não arranhar a sua imagem de bom moço, conseguida no primeiro filme. Houve instantes de confronto, luta, disputa, questionamentos, mas os propósitos escondidos nas veias da lógica venceram, e ele aceitou o papel.
VI – Os movimentos do filme
O ponto de partida do filme está no Texas, mais precisamente num Drive-in, onde uma antiga tela emite sons de patas de cavalos e efeitos sonoros deixados pelos inúmeros filmes que nela foram projetados.
Numa lanchonete distanciada da boa qualidade, Joe Buck é um simples lavador de pratos. É alto, loiro, e um porte físico de um deus do Olimpo, aspectos que o fazem acreditar que é um garanhão irresistível. Ao mesmo tempo seu ego o leva a acreditar que é um cauboy dos velhos tempos. Em uma manhã qualquer, sem que surja nada de especial no horizonte, larga o seu emprego, veste uma jaqueta de camurça, um chapéu de vaqueiro, um penteado semelhante ao personagem Príncipe Valente, botas e, assim, parte para Nova York levando um grande sonho na cabeça, tornar-se um garoto de programa, levando as “madames ricas”, endinheiradas, solitárias, carentes, ao delírio e futuramente, retornar ao Texas milionário.
VII – A viagem
A viagem do garanhão, dentro de um ônibus, transcorreu ao som da música “Everybody’s Talkin” de Harry Nilsson – montagem acelerada. A paisagem, a realidade, os sonhos do personagem se misturam às cores, imagens rápidas, velocidade, sono, e hipnose, cenas que transformam e inovam a técnica cinematográfica. A letra da música dilacerando o personagem aprofunda e antecipa os acontecimentos: “As pessoas parando e encarando/mas não consigo ver seus rostos/somente as sombras dos seus olhos/o ônibus, as estradas, as pessoas, os olhares sem entendimento e compaixão”.
VIII – Nova York
A cidade de Nova York parece o princípio e o fim do mundo. Luzes, faróis, milhares de pessoas na rua, trânsito, batidas, vida e morte. Ele, ainda embalado pelo sonho, é visto como um caipira, um homem esquisito, retrógrado, andando no calor dos dias e das noites, perambulando como um cão vadio. A cada passo do personagem, acontece o desmonte, a destruição, a desconstrução dos heróis dos filmes de faroeste, na verdade a mitologia e a simbologia americana são dissolvidas nas águas da desilusão.
Nas suas desesperanças e nas lágrimas derramadas na impotência, Joe Buck conhece Ratso Rizzo, um jovem vivendo a decadência física e moral. Os seus dentes não são bons, as unhas compridas e imundas, as roupas são os trapos dos dias, o cabelo oleoso, pastoso, mais os dois formam uma dupla rumando em direção a deterioração pessoal. O que é muito interessante, em termos de arte cinematográfica, é que os dois personagens conseguem viver estranhamente as suas horas pelas ruas, são desagradáveis, horríveis, no entanto, conseguem ultrapassar os limites dos sentidos, tornando-se personagens inesquecíveis.
IX – Desacertos
O cauboy está fora do seu mundo, uma espécie de sonho falido, Ratso se espelha em maneirismos, voz anasalada de tuberculoso, corpo encurvado, parecendo um corcunda, é patético, às vezes divertido, um pedaço da vida real e chocante. Os dois personagens são completamente opostos entre si, porém, geram uma amizade profunda, pura, verdadeira. Essa amizade, essência do filme, os leva a um fio de esperança, ou seja, na violência que habita o coração da megalópole, um só tem ao outro, a noite, o frio, a fome, a dor.
X – Traumas
Os dois, apoiados entre si, carregam traumas marcantes acontecidos no passado. Essa remontagem de um estado psíquico corroído, esconde algo que não pode ser revelado, porém, leva o espectador a perceber que a manifestação de algo estranho esbarra numa sexualidade um tanto quanto mutilada.
XI – A mensagem dentro de uma cena
Há uma cena do filme que Joe mostra a parede do quarto onde dorme, nessa parede há um pôster do ator Paul Newman, que para o personagem perdido na noite, trata-se de John Wayne. Nessa tomada, muito representativa, a mitologia do herói americano e do faroeste desfazem-se na temática de desmontagem da cultura americana.
XII – Realidade
O filme mostra uma Nova York como se fosse um personagem; uma cidade doente, suja, recoberta de miséria, de labirintos assustadores, de traumas, de lembranças, de fluxos de consciência, memórias de uma religiosidade profanada pela dureza da vida.
É nessa Nova York que Ratso atravessa as ruas, batendo nos carros, e dizendo: “Estou andando aqui”, frase que atravessou o tempo, aparecendo em tantos outros filmes.
Meus queridos leitores, Joe e Ratzo exerceram o direito de sonhar e, por isso, desapareceram na poeira do ato de existir, de viver. A música tema do filme, em um trecho diz: “O amor é tudo o que resta no final/o amor pode virar o jogo para um amigo/o amor pode realizar um sonho juntos/veja o solitário Midnight Cowboy”. Para a receita da semana, queremos homenagear o ator Dustin Hoffmann que, no termino das filmagens diárias, entrava na Padaria “Levain Bakery”, para saborear uma fatia do famoso bolo da Rainha Vitória, único momento que abandonava o personagem Ratzo e entrava para a nobreza.
Receita
Bolo da Rainha Vitória
Ingredientes: 1 xícara de farinha de trigo; 1 ½ colher de chá de fermento em pó; 1 xícara de açúcar; ½ xícara de manteiga amolecida; 2 ovos; ½ xícara de leite; 1 colher de chá de essência de baunilha.
Recheio
Geleia de morango ou sua de preferência; Chantily; Morangos; Açúcar de confeiteiro para decorar
Modo de Preparo:
Pré-aqueça o forno 200°. Unte uma forma redonda de 20 cm com manteiga e farinha. Peneire a farinha e o fermento em uma tigela e reserve. Bata na batedeira a manteiga e o açúcar. Adicione os ovos, um a um misturando bem após cada adição. Lentamente, mexa a mistura da farinha com a manteiga, açúcar e ovos. Adicione o leite e a baunilha e bata até que a massa fique lisa. Despeje a massa na assadeira untada e asse em forno pré-aquecido até que um palito inserido no centro saia limpo, +/- 20 minutos. Deixar o bolo esfriar por 10 minutos e desenformar. Corte o bolo ao meio, (na horizontal), passar uma camada de geleia de sua preferência, e rechear com chantily e adicionar os morangos. Passar a geleia na outra metade do bolo e colocar em cima da metade já recheada do bolo. Polvilhar com açúcar de confeiteiro e decorar com morangos.
Por Adriana Padoan