Eu sou um cão rafeiro ou mais conhecido como vira lata. Minha mãe foi sequestrada por um cão da alta sociedade. Minha mãe engravidou na chegada da primavera. No verão, o cão que se dizia apaixonado por minha mãe fugiu, abandonou-a na Fontana Dell Elefante. Eu nasci ao lado desse monumento. Ali eu vim ao mundo, aprendi a viver, correr, cantar, dançar, sobreviver debaixo do sol ou da lua, acompanhando o desnorteio dos boêmios, das mulheres donas da rua. Minha mãe foi capturada pelo carro da vigilância, desaparecendo nas neblinas que não compareceram aos bailados das madrugadas.
Na floração da açucena, flor possuidora dos encantos, eu cruzei com o diretor de cinema Giuseppe Tornatore, na Praça da Loba Luperca, que alimentou os gêmeos Romulo e Remo, responsáveis pela fundação de Roma. Tornatore colocou seus olhos em mim; alguma coisa mexeu e remexeu com minha alma; ele me cativou sem pedir licença; eu percorri a intenção de seus sentimentos; a “amoseduão”, mistura de amor, sedução, amizade na linguagem dos cães, explodiu em nós. Ele passou as mãos pela minha pelugem, chorou o que havia na inexistência dos seres e me levou para sua casa.
Volta dentro da volta
A minha vida mudou da mesma forma que a lagarta se transforma em borboleta. Conheci a história do cinema, caminhei pelo seu corpo, seus atores, suas narrativas girando dentro das câmeras, dos roteiros escritos no calor das noites. Na chegada do outono, no silêncio das tintas que vão repintando as folhas das árvores, Tornatore pegou-me nos braços e, ao lado de artistas, iluminadores, dos técnicos, e me levou ao salão de projeção para assistir ao seu novo filme “Cine Paradiso”, que seria lançado no mês seguinte, nos cinemas do mundo. Colocou-me na primeira poltrona, tendo à minha frente uma bacia de pipoca. A luz apagou-se. Ouvi o barulhinho de um projetor; a imagem caminhou pelo ar, amparada pela brisa invisível, e a minha alucinação acelerou o meu coração, não sei para onde, mas as suas batidas retumbaram nas asas do meu anjo da guarda. Sem pretensão ou desejo lati um trecho da Ópera Madame Butterfly.
O vilarejo estático
A tela não tremeu, não demonstrou espanto nem conflito, apenas a imagem do vilarejo denominado Giancaldo, um espaço fictício invadiu todos os olhares. As ruas revestidas de pedras brutas, o cheiro da Idade Média penetrado no chão, a destruição causada pela 2ª Guerra presente nos montes de entulho espalhados pelas esquinas e praças, casas tombadas dialogando com a morte, o silêncio gravado nas paredes e janelas. Uma grande praça se apresenta como o centro e o palco dos acontecimentos do vilarejo. No meio da praça, assemelhando-se ao um venerável oratório, ergue-se o Cine Paradiso, construção feita de fé, sonho, devaneio e ilusões erguidas ou desfeitas.
A casa do menino Totó
O menino tinha o olhar triste, navegando entre o passado, o presente e o futuro. Morava numa casa marcada pelo tempo, com sua mãe, a irmãzinha e a esperança de cada dia, de todas as horas. O pai pertencia ao mundo da guerra, ninguém dava noticias de seu paradeiro. A mãe acreditava no retorno do marido; para manter os filhos, costurava para fora. Às vezes, movida pela dúvida e incertezas brigava com Totó, descontava no pequeno o descontentamento pelo ato de existir. Para fugir da realidade que devorava a todos, o menino refugiava-se no cinema. Nesse espaço de escape emocional, fez amizade com Alfredo, projetista dos filmes do Paradiso. Um homem bom, entregou a sua vida ao cinema, aprendeu a costurar as agruras do cotidiano com pedaços de linha do bom e do mau humor; era casado, mas não tinha filho. Assim, ele e Totó, pacificavam a ansiedade da alma com filmes como Casa Blanca e O Vento Levou, ou as irreverências de Chaplin.
O público do Cine Paradiso
Eu estava emocionado com a história; em alguns momentos ou em cenas surpreendentes, lembrava-me de minha mãe presa pelo carro do serviço sanitário. Foi refletindo sobre a minha vida de cachorro que passei a observar o público que frequentava o Cine Paradiso. Eram homens, mulheres, crianças e jovens abalados pela agonia da guerra.
Havia o cidadão que cuspia nas outras pessoas; o dorminhoco que ressonava de boca aberta engolindo besouros e outros bichos; o paquerador permanente; o chorão, lágrimas molhadas pelo medo; as crianças gritando e batendo os pés no chão; a mãe amamentando o filho de colo; os analfabetos, a maioria, perdidos nos labirintos das letras. Lati três vezes, para mim mesmo, porque conheci o retrato da Itália da minha época.
A cena do enterro
Umas vinte pessoas participavam de um enterro. A estrada que levava ao cemitério era estreita, cheia de pedras. Na frente do povo, vivendo pensamentos distantes, o padre e o menino Totó, coroinha da pouca fé de criança. As orações saiam dos lábios e perdiam-se no infinito. No retorno do cemitério, na curva do caminho, Alfredo, pedalando sua bicicleta, cruza com o sacerdote e o menino caminhando lado a lado. Totó pensa por um segundo, reflete na fatia de um tempo jogando-se ao chão e gritando de dor, embora inexistente. Alfredo dá carona ao moleque, as praias rastreiam ao longe, o mar azul finge não ver as causas e consequências. O rosto de Alfredo, marcado pela alegria do momento, pedala movimentos entre nuvens; o riso de Totó encanta os girassóis da margem do caminho, a amizade tonteia o universo, parecem os meninos fugindo com o E.T., dentro da lua crescente.
O padre, Alfredo e o menino
Totó permanece escondido entre as cortinas. O cinema vazio e emudecido. O padre Adelfio sentado em sua poltrona preferida, com saco de pipocas nas mãos. A sala de projeção iluminada. Totó, sempre escondido, com os olhos fixos na tela. Alfredo, angustiado, projeta o filme para o sacerdote e o garoto em seu mundo de sobras e satisfação. No filme, lindo como o caminhar da vida, a moça apaixonada deita-se sobre uma pedra, a beira do mar. O rapaz, contendo a sofreguidão, deita-se ao lado da mulher. A carícia vem embalada de desejos, os lábios se procuram e o padre, em desespero, grita: “corta!”. Alfredo tenta conter a explosão de raiva, Totó gargalha; o padre devora um punhado de pipocas.
O analfabetismo
Pessoas andam pelas ruas; crianças em fila entram na escola. Na sala de aula, as crianças refletem o mundo das lousas. Vários adultos, entre eles Alfredo, sentam-se no meio da criançada. Os homens estão na sala de aula para prestar uma prova de capacitação dos estudos primários, numa tentativa de sair da estatística do analfabetismo no país. Alfredo recebe a prova, passa os olhos pelas questões, não sabe nada. Pede ajuda ao menino Totó. A câmera foca os rostos dos dois autores, a câmera detalha os olhares e os gestos furtivos, as interpretações são perfeitas. Totó ajuda o amigo Alfredo, em troca de um aprendizado sobre a técnica de projeção de um filme.
O sonho de Gil Vicente
A noite parecia uma fotografia pendurada na sala de estar. O público, na porta do cinema, impaciente como sempre. Na cabine de projeção, Alfredo e Totó percebem o desarranjo da máquina que, naquela noite, resolvera não funcionar. O povo é avisado do problema. Houve revolta, gritos, descontentamentos. Alfredo coloca o projetor sobre as batentes de uma janela. O filme é projetado na parede de um dos prédios da praça. O milagre acontece e o cinema desloucou-se para o espaço público, exatamente como Gil Vicente, teatrólogo português, fizera na Idade Média com seu Teatro de Curral. A arte cinematográfica visita o Teatro Vicentino e dessa forma, o fazer artístico atravessa o tempo e a história, derruba mitos e tabus, renovando a permanência do homem nesse mundo assustado consigo mesmo.
No desenvolvimento de Cine Paradiso
Totó na adolescência vive um amor impossível, nos moldes de Romeu e Julieta. A sua vida em Giancaldo perde o sentido, o rumo, e o caminho traçado dentro do seu destino. Incentivado pelo amigo Alfredo, abandona o vilarejo e parte para Roma em busca dos sonhos que embalaram os seus dias, os seus passos, o seu coração. Torna-se um diretor significativo para o desenvolvimento histórico do cinema. Vive a vida e grandes amores, embora não consiga preencher o vazio perdido na decepção amorosa da adolescência. Permanece durante 30 anos no mundo reconstruído nas telas e fora dela, sem retornar ao vilarejo de Giancaldo. Totó estava em sua casa, em Roma, quando fica sabendo da morte do amigo Alfredo. As lembranças percorrem todos os espaços de seu corpo; a sensibilidade o coloca dentro do carro; desloca o carro para a estrada e o reencontro atravessa as marcas das quilometragens. Entra em Giancaldo pela porta da frente. A cidade modificara-se. A memória, no entanto, continua pendurada nos “Sinos dos Ventos” e continua soando, soando! A vida passada deslocara-se do seu corpo; Totó não pertencia mais aquele mundo. O Cine Paradiso seria destruído para a instalação de um estacionamento. A mulher de Alfredo, após o enterro entrega-lhe uma lata de filme, embrulhada com papel de cobrir os pães de todos os dias; a lata era a herança que Alfredo deixara ao cineasta Totó, um tipo de cordão umbilical entre os dois amigos e a sétima arte.
A última cena
Totó está numa sala de projeção sofisticadíssima. Não há ninguém ao seu lado, somente o espírito de Alfredo. A luz do projetor acende. O filme deixado por Alfredo penetra a brancura da tela. As imagens ganham vida e todas as cenas de beijo censuradas pelo Padre Adelfio saltam para os braços de Eros, Deus do Amor e da Vida, e o cinema renasce, a sua história respira a liberdade vivenciada, e as lágrimas assumem a sua função e necessidade.
Eu, um cão vira-lata, assisti a esse filme ao lado do meu amigo Giuseppe Tornatore, diretor e autor do roteiro. Ele chorou muito; eu o acompanhei por necessidade emocional e por entender, finalmente, que ainda há poesia nesse mundo.
Receita
Calzone
Ingredientes:
Massa: 500 g de farinha de trigo (sem fermento); 250 ml de água; ½ colher (sopa) de açúcar; ½ colher (sopa) de sal; 1 colher (sopa) de azeite; ½ colher (sopa) de manteiga ou margarina; 5 g de fermento biológico fresco ou colher (chá) de biológico seco.
Modo de preparo:
Numa tigela grande junte o fermento e o açúcar e misture bem. Coloque o azeite, a margarina e a água e continue misturando. Em seguida adicione a farinha de trigo e o sal. Vá trabalhando a massa até ela ficar bem lisa e homogênea. Divida a massa em 3 partes iguais. Faça uma bola com cada massa e disponha em uma travessa. Cubra e deixe a massa crescer por uma hora.
Como fazer o Calzone:
Abra a massa com a ajuda de um rolo, com cerca de 35 cm de diâmetro. Passe um pouco de molho de tomate na metade a massa, cubra com o recheio de sua preferencia ( queijo, presunto, frango, catupiry, etc.). Feche o Calzone ao meio e dobre a borda da massa apertando com os dedos para o recheio não vazar. Com a ajuda de um garfo, faça alguns furos em cima. Passe um pouco de azeite ou molho de tomate por cima e se preferir salpique queijo ralado ou mussarela. Leve para assar em formo pré-aquecido, 200 graus até ficar bem dourado.
Por Adriana Padoan