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terça-feira 28 janeiro 2025
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Comilanças Históricas e Atuais – Sem destino: a rebeldia de uma década

I – Anos 60 – filho de um anjo
Não há certeza absoluta, nem uma causa científica que consiga colocar, numa fórmula, os acontecimentos abaladores que sacudiram a década de 60. Existe, porém, uma lenda italiana nascida num vinhedo de um lugarejo, que afirma ter descido do céu um anjo elegante vestido com um manto de cristal que, depois de chupar cachos e cachos de uva merlot, dormira por tinta e sete dias; quando despertou, lançou no ar uma espécie de polén, muito funcional e, um dos seus trabalhos, foi a gestação dos anos 60.

II – Protesto
A calma jogava bolinha de gude no bairro Quartier Latin. Uma senhora linda, carregada de história dentro de si, cantava uma canção. No início do canto de um rouxinol, pousado no galho de um pinheiro, alguém explodiu uma bomba em algum lugar; todas as universidades fecharam as suas portas, os estudantes tomaram conta das ruas, fizeram discursos, incendiaram carros, também ônibus; as vozes, como um coral, atingiu as universidades do mundo e, a rebeldia, os gritos de protestos reivindicavam liberdade para se viver, liberação sexual, fim da escravidão da moda, extinção da opressão familiar, escolar, nos locais de trabalho. Bombas, correrias, fogos, disparadas e músicas.

III – A contaminação
No saguão de um hotel, nos Estados Unidos, um tiro dentro da noite, calou a voz de Martin Luther King e o medo correu ao lado das sarjetas. Os protestos contra a guerra do Vietnã vertiam-se nos goles de coca, nos recheios dos bolos, nos beijos de amor.

Na indústria farmacêutica da Sandoz, um químico desengonçado, trapalhão, aspirou uma porção de pó, resultante de sua pesquisa, endoidou e o mundo enquadrou-se numa moldura alucinógena e o pó chamou-se LSD; o químico, Albert Hofmann, naquele instante, criara a base para o movimento Hippie. Jovens que se rebelaram contra a moda, os sapatos, o corte dos cabelos, espalhando a ideologia da não violência, do repúdio ao Vietnã, agarrando-se ao Slogan Flower Power, o poder das flores, das drogas, da liberdade, da fervura do Rock e dos conjuntos denominados: “The Beatles” e “The Rolling Stones”.

Na passagem da noite chuvosa e melancólica, um grupo de jovens, em torno de uma mesa esfumaçada, planejavam o festival de Woodstock, na fazenda de Max Yasgur. Na bandeira rasgada pela ventania, surgiram os movimentos Black Power, a rebelião negra; Gay Power, um gemido espremido pela sigla LGBT; o movimento Baby Power, um susto pela quantidade de nascimento pós-guerra. A pílula anticoncepcional rolou nas proximidades dos confessionários; a Jovem Guarda, o Tropicalismo, apresentaram Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, Gal Costa, Maria Bethania e Roberto Carlos, entre outros.

IV – Megalomania em desespero
Cuba, a ilha, levanta a testa, joga a visão no mar, faz uma revolução. O tiro de fuzil atravessa as ruas de Dallas, risca o ar sem fazer ruídos, implodindo os sonhos do presidente Kennedy. Yuri Gagarin navega através dos limites da órbita terrestre; Neil Armstrong pisa na lua, fazendo-lhe uma declaração de amor: “É um pequeno passo para o homem, um grande passo para a Humanidade”. A Guerra Fria, gelada, preenche as forminhas de gelo de todas as geladeiras do cosmo. Durante o sono das crianças, deitadas em berços, camas, ou calçadas das ruas, o destempero humano ergue o muro de Berlim. Vietnã vive nos braços da noite; Bob Dylan canta a opressão que oprime o pensamento e o coração; o Capitão América, nos quadrinhos, defende a sua pátria na Segunda Guerra; na África do Sul, num centro cirúrgico, acontece o primeiro transplante de coração, a morte distancia-se para um dos cantos da sala.

V – O Barracão
O barracão ficava nos fundos da casa dos irmãos Arthur e Walter Davidson, em Wisconsen. No sonho que rolou montanha abaixo sobre a cabeça dos dois, um feiticeiro surgiu do nada, anunciando que os dois fariam a motocicleta mais famosa da vida pisada, rodada nas estradas. Ao acordarem, procuraram o experiente William S. Harley; montaram uma sociedade; engravidaram-se no mundo das ideias; meses depois, deram à luz a motocicleta Harley-Davidson, e as distâncias sorriram oniricamente, para disfarçar a realidade.

VI – Cinema e a linguagem das motocicletas
Em 1954, data suspirada na bancada da recriação, Hollywood lançou o filme “O Selvagem da Motocicleta”. O astro Marlon Brando, vestindo uma jaqueta de couro, comandando vários motoqueiros; a rebeldia maquinizada, apavoram uma cidade. Em 1969, dois motoqueiros pilotando motocicleta Harley-Davidson, cruzam estradas asfaltadas pela realidade histórico-social da América do Norte, em busca de um espírito atrofiado pelos anos 60, com suas causas e consequências.

O filme “Sem Destino” mudou a história do cinema mundial, e, a partir desse momento, abriremos as portas de uma câmera de filmagem, para visitarmos, juntos, o universo das cenas lindas e ásperas do “Sem Destino”.

VII – Nada tem destino nos E.U.A.
Em 1969, segundos comentários, Peter Fonda, sob o efeito de um cigarro de maconha, viu uma foto sua ao lado de uma moto. A ideia chegou logo depois, criar um filme onde a estrada fosse um personagem fortíssimo, que o levaria a conhecer o sonho, a América, a realidade.

VIII – Do sonho a realidade
Peter Fonda narrou o acontecimento ao ator Dennis Hopper; o projeto entrou para a alma do ator. Imediatamente, numa atitude de olimpíada escrita; Fonda, Hopper, Terry Southen criaram uma história sem história. Até hoje, os críticos de cinema, não conseguem chegar ao verdadeiro autor do roteiro, meio inexistente do filme, um roteiro para receber acréscimos, emendas, inovações.

IX – Guerra, diplomacia feitas de espuma de sabão
O início do filme, o personagem Wyatt (Peter Fonda) e Billy (Denny Hopper), chegaram pilotando duas velhas motos, que são atiradas ao chão, num velho armazém do México, lugar pobre, desprezível, mau cheiroso e sujo. Os dois motoqueiros assumem a função de comerciante de um produto, uma venda de cocaína que, pela ilegalidade da transação, giram no interior de um negócio ilícito, o que transforma a comercialização em tráfico. O filme não esclarece mas, ao que tudo indica, saíram de Los Angeles, revestido do propósito do sonho norte-americano: ganhar, obter o maior lucro possível numa única operação econômica para, na lucratividade da crença do consumo, tornar-se livre. Eles conseguem o intento, adquirem motos Harley-Davidson. Escondem o capital no tanque de gasolina das motos.

O odor da história da América apoia-se nos nomes dos personagens, nomes amarrados ao processo simbólico que fizeram o país. Wyalt está amarrado ao símbolo Earp; o xerife, considerado o peito da América; o apelido Capitão América, atribuído Wyalt, o direciona ao vestuário e ao heroísmo; Billy usa o guarda roupa de Búfalo Bill, o aventureiro nacional da época das conquistas do Oeste.

Eles vendem a cocaína, o lucro é ilimitado. Antes de montar em suas possantes motos, suas cabeças visam um enorme coração mapeado contendo a Califórnia, Nevada, Utha, Arizona, Novo México, Texas. Eram terras mexicanas que os Estados Unidos anexaram no corpo da América. Antes do comércio de drogas, os americanos, traficaram terras, cidades, estados. Eles aceleram as motos, bateram os olhos na estrada, projetando chegar a Nova Orleans, para participar do Carnaval Mard Grás, famoso pelas máscaras, bonecões de gesso, desfile, tudo direcionado ao universo do não ser. O tempo do Carnaval coincide com um mundo em ebulição. Novas ideologias, greves, bombas, drogas, delírios, a paz, o amor, o assassinato, a moda desmontada nos pântanos assustadores.

O “Sem Destino” nunca poderia ser realizado em outro momento histórico, era o filme necessário para sair do útero naquele instante. Diante dos olhos você tem a estrada, no interior da cabeça você tem uma ideia, um desejo, uma vontade, dentro da sacola você tem drogas; nas laterais, as paisagens lindas da América abraçadas pelo sol e pela lua.

Os pés acelerando, o vento dizendo poesias com suas montanhas, montes, subidas e descidas no meio do deserto. A maioria dos filmes de cowboy de John Ford foram filmados ali. Os ruídos das motos contornaram o desenho do corpo de John Wayne. Atrás do morro surge o vaqueiro arredio com sua própria altura, chapéu, botas, palito no canto dos lábios, o colt 45 nas mãos, corpos tombando, e o herói de uma América morre diante de dois cabeludos, sujos, motoqueiros. Mas o contestador Wyatt, mesmo com sua motocicleta, tem o seu nome ligado ao delegado Wyatt Earp e ao histórico tiroteio do Curral Ok, troca de tiros que durou trinta segundos, um orgulho contado por Tio San. O motoqueiro Billy, existência chapada, por outro lado, nos remete a Búfalo Bil, o herói matador de búfalos, alimento que dava vivencia aos índios americanos.

O que nos interessa, nesse agora, é que o ronco das motos e a falta de um grande destino, enterram um pedaço lendário da América do Norte.

Eles passam por pequenas cidades, por vilarejos, rodam e engolem estradas afastadas, esperando pela noite. Na escuridão, acendem uma fogueira, queimam uma ponta, apagando-se na ausência dos sonhos.

Uma das cenas mais intrínseca, os dois encontram uma comunidade hippie. O sorriso baralhado com o sexo, o plantio sobre a secura da terra, as crianças abraçando pais e mães. Na chegada do entardecer, piscado pelo sol, reúnem-se em torno do líder do grupo para jantar. A oração é simples, fala do amor, da terra, do alimento, e a Santa Ceia novamente é pintada com cheiro de gasolina das motocicletas.

Em uma cidade minúscula, abastada de tradição, os dois motoqueiros são presos. Na cadeia conhecem o alcoólatra George Hanson, advogado, interpretado por Jack Nicholson. Nesse ponto chave do filme, “Sem Destino” concede-nos o prazer de conhecer um filósofo dos anos 60, um ator proprietário do mistério da arte de interpretar, um exemplo do ser humano que vive no caldeirão das bruxas e da época. Ele, mesmo bêbado, liberta os dois da prisão. Aceita uma carona na motocicleta de Wyatt, passando a sentir o sopro pampeiro no rosto. Na palpitação da noite, fuma maconha pela primeira vez. Fala dos homens que habitam o planeta Vênus; são seres evoluídos que se transportam de ponto do espaço a outro; os homens do céu universal, estão entre nós. Na madrugada, fase de transição, a comunidade reprimida pela década, liberou os seus traumas atacando os “cabeludos” a pauladas, atitude motivada pela violência da década. As estrelas, o céu, a fogueira, a mata, e a morte do advogado George Hanson entra para a estatística dos que morreram na revolta de Paris, nos porões da ditadura militar, no momento hippie, nas lutas que sangraram uma década.

Os dois aventureiros do destino que estiveram escritos nas estradas, chegam a Nova Orleans, andam pelas ruas agitadas pelo carnaval. Mascaras, bonecos, carros alegóricos, bebidas, drogas. Encontram as mulheres que viviam nas casas de tolerância toleradas. Caminham em direção ao cemitério, o prenuncio da morte. Beijam-se, amam-se, tomam LSD e o delírio vem em ondas psicodélicas. O filme “Sem Destino” torna-se tão forte que a realidade respira pelos poros, e o cinema, pela primeira vez, roda imagens de atores representando os efeitos do LSD, filhote gerado no ventre dos anos 60.

Os novos heróis subcutâneos da pele social e anti-heróis da construção de um novo mundo, retornam à estrada. Eles continuam o deslocamento pela rodovia, ouvindo o som surdo das cilindradas. Um pequeno caminhão dirigido por caçadores locais, homens curtidos pelas tradições desenhadas em décadas anteriores, atira em Billy. O seu corpo, sem vida, é coberto pela bandeira americana estampada na jaqueta de Wyatt. O amigo, descontrolado consigo, com a estrada, com o mundo parte atrás dos atiradores. Um novo tiro, disparado do carro, da mesma arma, explode a motocicleta de Wyatt, e a mudez assume o seu desenvolvimento com a tela do cinema, fechando a cortina e mostrando, ao longe, o infinito coberto pelo asfalto, uma motocicleta tombada entre labaredas, arremessando ondas de fumaça negra, em um espaço sem vida, sem destino, sem essência do nada.

Receita
Geléia de pinga

Ingredientes: 4 gelatinas em pó sem sabor, 1 quilo de açúcar cristal, 1 copo de água, 1 copo de pinga, corante e essência no sabor desejado.

Modo de fazer: Em uma panela coloque todos os ingredientes e mexa até levantar fervura. Quando ferver retire do fogo, espere abaixar a fervura e coloque novamente para ferver. Repetir a fervura por três vezes.
Colocar em um tabuleiro untado com óleo e esperar endurecer em temperatura ambiente. Não colocar na geladeira. Após endurecida, cortar em quadradinhos, ou no formato que quiser, passar no açúcar refinado e deixar secar o açúcar de um dia para o outro.

Por Adriana Padoan