I – A escritora: origem da criação
A escritora Frances Mayer caminhou por várias estradas da literatura. Escreveu sobre viagens, culinária, enologia, chegando a mergulhar na alma humana, procurando entender o amor, a paixão, a traição, o destino e os conflitos que movem a sensibilidade da natureza. Os seus romances procuram demonstrar a história e as lendas que nascem dentro de cada ser que habita este planeta navegante em um universo totalmente desconhecido. Em um momento de sua vida, comprou e reformou uma casa abandonada pelos donos e pela sua própria antiguidade, na região da Toscana, na Itália. A reforma da casa, a descoberta da história dentro de cada tijolo, o contato com o povo a levaram a escrever o romance “Sob o Sol da Toscana”, uma leitura comprometida com o calor evaporado da pele de uma região constantemente visitada pelo sol, pelas lendas, pela mitologia que, com sua arte, costura os sentimentos humanos ao ventre da terra, ao coração da Toscana.
II – Do livro para o cinema
Em 2003, os produtores cinematográficos, Tom Stemberg e Audrey Wells resolveram transportar o livro “Sob o Sol da Toscana” para a linguagem do cinema, linguagem dos movimentos, das imagens, dos diálogos elaborados de acordo com o olhar apaixonado das câmeras, dos atores e do cenário que sustenta a narrativa.
III – O filme
A escritora e crítica literária, Frances, participava de um coquetel realizado para o lançamento de um livro escrito por um amigo. As conversas, os sorrisos, os comentários paralelos, a bebida, são acontecimentos quebrados com a aproximação de um escritor, que tivera um de seus livros criticados negativamente por Frances. O encontro estava marcado pela mágoa, pelo rancor, do escritor criticado. No meio da conversa, por vingança, sugere que o marido de Frances a trocara por uma mulher mais jovem e grávida.
O fato que fora sugerido, transforma-se em realidade. Frances foi abandonada pelo marido e, durante ação do divórcio, perdeu a sua casa, produto de trabalho, sonhos, luta, crença e realização.
O mundo de Frances, de uma hora para outra, parecia pender nas bordas de um precipício. Duas amigas, lésbicas e excluídas por uma parte do mundo, deram-lhe uma passagem para Toscana, numa excursão de gays, procurando atenuar os sentimentos obscuros que rondavam o cotidiano da escritora.
Francis parte para Toscana, sente o cheiro de uma civilização que desenhara o mapa da Itália, e se encanta com a beleza da natureza, com a alegria do povo, com a espontaneidade dos comportamentos. Durante um dos passeios, passa por um lugar conhecido como “Bramasole”, e observa uma casa abandonada, uma arquitetura com semblante medieval, colocada à venda. Em seu interior, no ímpeto que vem da alma, resolve comprar a casa e restaura-la, um trabalho gerado pela poesia, pelo despertar de uma história repleta de acontecimentos, que marcaram a sensibilidade registrada pelas sílabas pronunciadas pelo tempo.
IV – O filme e os signos
A reforma da casa está unida à necessidade de transformação de Frances, do restauro do amor que fora deixado em um lugar qualquer, abandonado, desgastado sem justificativa, a recuperação da autoestima, o reencontro com o sorriso, com a alegria de viver.
As suas mãos descobrem, na guarda de uma cama, a imagem de Maria, e o seu reencontro com o sagrado, com o apoio que se desfizera em sua infância.
A reforma da casa leva Francês as encontro da fluição de sua vida, como a existência da fonte em Toscana, símbolos da renovação revisada pelos acontecimentos históricos. Na velha casa, numa parede que divide os cômodos, há uma torneira sem água, ou seja, uma fonte adormecida, como o “eu” de Frances.
As noites de Toscana entram pela janela do casarão que sobreviveu ao tempo; Frances observa a lua, as estrelas dançando as músicas deixadas pelos etruscos, povo que deu existência a região; por breves minutos, pensa em “Bramasole”, palavra que significa desejar o sol, buscar a luz do sol, exatamente o que o seu “eu” psíquico necessita, a restauração interna.
A redescoberta de si mesma conforta-se com histórias paralelas que não eliminam o tema do filme, o compromisso com a reforma interior. Os pedreiros poloneses que trabalham na restauração da casa possuem conflitos significativos para a elaboração da fábula que envolve o sol da Toscana. O seu encontro com a estranha atriz Katherine revive um momento grandioso do cinema italiano de Federico Fellini. A personagem veste-se com trajes que surgiram no mundo surreal de Fellini: O sol da Toscana reencontra, através de Katherine, a figura marcante da vendedora de cigarros do filme Amarcord, a imagem que transgrediu a sua sexualidade infantil; na chegada da noite, a sonhadora Katherine entra na Fontana de Trevi, rememorando a cena mais sensual do mundo felliniano de “La Doce Vita”, interpretada por Anita Ekberg.
O caso de amor entre Frances e o sedutor Marcello, um instante em que a vida parece renovar-se, textualiza o protótipo erótico desenhado pela cultura internacional, elaborada a partir da historicidade da sexualidade italiana e a transitoriedade dos americanos.
O outro ponto que marca o roteiro do filme centraliza-se na montagem e organização dos diálogos. A fala e os conselhos emitidos por Katherine são fragmentos muito sensíveis do universo criado por Fellini. Num dos momentos de insegurança de Frances, Katherine conta-lhe uma história ocorrida na profundidade de sua vida: “Eu vivia procurando joaninhas e não as encontrava. Um dia adormeci na grama e quando acordei estava coberta de joaninhas, um monte delas”!
Para Fellini a joaninha carrega uma caixinha levando, em segurança, a sorte e o amor. O cristianismo, na elaboração de uma simbologia própria, associou a joaninha a força existente na proteção, na vontade de estabelecer segurança, portanto, irmanada à Virgem Maria. Essa imagem vem da Idade Média, um período orientado pelo saber e pela escuridão. Os camponeses medievais, corpos suados pela labuta e pela exploração, pediram a Virgem Maria que protegesse as suas lavouras, ameaçadas pelas pragas, A virgem ordenou às joaninhas que devorassem as pragas, e as joaninhas atenderam a solicitação de Maria.
O filme “Sob o Sol da Toscana” possui uma face, um significado que vai além das aparências, ultrapassa os limites da simplicidade, mergulhando, com suavidade, na política, na psicologia, na valorização da história, na recuperação pessoal, na valorização do ser humano, enquanto elemento que vive o drama da natureza, ou seja, na transposição dos dias, e das noites, do calor e do frio, da certeza e do imprevisto, da felicidade e da agonia, da alegria e da tristeza.
Frances restaura a casa, facilitou a história de amor de um de seus pedreiros poloneses, auxiliando-os no casamento. E, mais uma vez, retornando o mundo de Fellini, há a história dos Trilhos de trem dos Alpes, ou seja, dizem os italianos que, numa época de vivência dos sonhos, assentaram os trilhos nos Alpes entre Viena e Veneza antes que houvesse um trem para fazer o trajeto, mas mesmo assim construíram, porque eles sabiam que um dia o trem chegaria. A vida, portanto, tem um pouco de mensagem, de imaginação, de loucura, de fé, crença, luta, trabalho, amor, paixão.
Na festa de casamento de um de seus trabalhadores poloneses, o adolescente Pawel, Frances assume o papel da família ausente, um pedaço do drama dos imigrantes estrangeiros, na região da Toscana. Durante a festa, Frances estica o seu corpo sobre uma poltrona antiga, modelada na época do renascimento; fecha os seus olhos, abrindo as portas da imaginação carregada de sonhos, permitindo que uma joaninha pouse em seu braço. Um escritor americano passando pela Toscana, deseja conhece-la. Ele se aproxima, retira a joaninha do braço de Frances, sorri-lhe e, como um cavalheiro medieval, entrega-lhe o amor rejuvenescido, restaurando como a velha casa que testemunhou a passagem da história, acomodada em cantigas que atravessaram o tempo, invadiram centenas de corações, caminharam pelos campos cobertos de girassóis, e, no presente, moram nas páginas dos livros.
No filme “Sob o Sol da Toscana”, há uma cena que se repete em vários momentos, documentando o estado emocional da personagem principal. Nessa cena há em um antigo caminho, um tipo de altar feito de centenárias pedras e um velho, lindo, usando terno e chapéu que, diariamente, coloca flores novas em um vaso feito de pedra. Há mil significados envolvendo a estrada, o velho, as flores, a perpetuidade gerada pelos grandes amores. No entanto, para o mundo do cinema, trata-se de uma homenagem, de um reconhecimento a quem lutou bravamente para que o cinema atingisse a grandiosidade encantada, a imagem do possível e do impossível, que todas as artes possuem. O velhinho das flores, do caminho, do amor eterno e constante, é interpreto pelo consagrado ator e diretor Mario Monecelli, um cineasta da época de Fellini; um artista que filmou a realidade cruzando a vida dos homens, mulheres e crianças vivendo sob o sol de sua amada Toscana. Frances tentou, durante todo o desenvolvimento do filme comunicar-se com o velhinho das flores, sem obter nenhum resultado. Na ultima cena, porém, após a sua luta pela recuperação da identidade, o velhinho leva a mão até o chapéu, cumprimentando-a pelo renascimento de um novo “eu”, de uma outra mulher vivendo sob o deslumbrante sol da Toscana.
Na bela região da Toscana, com o seu constante céu azul, pessoas alegres e comunicativas encontramos uma infinidade de receitas que são registros históricos abraçados pelo tempo. Sua gastronomia é famosa, conquistando pelos seus sabores, todos os países desse nosso planeta. As ruas exalam os perfumes dos temperos, das frutas coloridas e das conversas acaloradas que identificam a presença do sol regional. Dessa forma e por esses motivos, escolhi uma, entre as infinidades de receitas maravilhosas que lá encontramos, para dar aos meus leitores um gostinho da alegria e da vida de Toscana.
Receita
STRACOTTO COM POLENTA CREMOSA
Ingredientes:
Para a carne: 1,5kg de carne bovina sem osso (usei costela); 80g de manteiga sem sal;
50g de bacon; 1 litro de caldo de carne; 1/2 garrafa de vinho tinto; 1 cebola; 1 talo de salsão; 1 cenoura; 5 ou 6 dentes de alho; 1 lata de tomates pelados com o suco; sal a gosto; pimenta-do-reino moída na hora
Para a polenta cremosa: 1 de xícara de polenta grossa; 2 xícaras de leite; 1 xícara de água; 2 colheres (sopa) de manteiga sem sal; 1/2 xícara de parmesão ralado; sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto
Modo de fazer:
Carne: Faça furos na carne e distribua entre eles os dentes de alho sem pele; esfregue toda a superfície da carne com sal e pimenta; coloque no processador o bacon, a cebola, a cenoura e o salsão e os triture. Ponha um fio de óleo numa caçarola grande e doure a carne de todos os lados. Tire da panela e reserve. Ponha a manteiga, a pasta de bacon e os vegetais, sem lavar a panela, e refogue bastante, até amaciar.
Junte a carne aos temperos e regue com o vinho e as duas xícaras de caldo de carne. Junte o tomate pelado, aos poucos, mexendo. Tampe a panela e cozinhe em fogo baixíssimo por cinco ou seis horas, adicionando o caldo sempre que necessário, virando a carne de vez em quando.
Polenta cremosa: Ponha numa caçarola grande o leite, a água, os temperos e deixe ferver. Despeje a polenta aos poucos, usando uma peneira, sem parar de mexer. No início use um fue, quando começar a engrossar, troque para uma colher de pau. Mexa por aproximadamente uns 20 minutos, até que a polenta desgrude facilmente do fundo da panela. Desligue o fogo, junte a manteiga em temperatura ambiente, o queijo ralado, mexa bem e sirva com a carne.
Por Adriana Padoan